coluna de opinião da série Foto em Foco
Márcio Pannunzio, texto & fotos
aqui é
Matrix
Na Matrix o comunismo existe. Tarefa patriótica é combatê-lo e pra tanto, é indispensável juntar forças e armas e por isso clama-se, roga-se, implora-se pela intervenção redentora das forças armadas brasileiras que tão sabiamente nos governaram antes juntamente com o suprassumo dos civis numa época de milagrosa pujança econômica, de inesquecível matança de esquerdistas e assemelhados e de miraculosa pregação infatigável dos pátrios familiares e de propriedade privada valores.
Na Matrix o assassinato do presidente paraíba há muito se consumou. Sua figura tida por tacanha, burra, pinguça, ladra, corrupta, presidiária, petralha enverga rótulos celerados celebrados com contentamento espalhafatoso na bocarra acetosa dos seus detratores defensores da moralidade pública: ladrão, ladravaz, luladrão, descondenado, nove dedos, nine… Esse último cuspido com arrogância por asseclas dos estates.
Lembrar quando começou. Jornalões Veja TVs em cruzada épica contaminavam sem trégua todos os lugares martelando narrativas, – esse hoje tão em voga substantivo que virou adjetivo-, impiedosamente como se verdades fossem. Timidamente, foram surgindo aqui e ali, nos grupos de família, nos de amigos, nas páginas das redes sociais, no YouTube, censuras. A maioria lia, ouvia e permanecia quieta. Sentindo-se acolhidas, essas reprovações difamatórias deitaram e rolaram e rolaram e rolaram se agigantando num tamanho tal que, quem, sem prudência, pio contrário desse, falecia vítima duma implacável execração.
Deu no que deu. E o filme da vez é a noite dos mortos vivos, de George Romero, superior ao Matrix de Lilly e Lana Wachowski que degringolou prum romance açucarado temperado por intragáveis cenas em câmara lenta de pancadaria culminando num messianismo rastaquera. Esse filme antológico data de 1968, tão longe; o glorioso ano da promulgação do abominável Ato Institucional número cinco, o AI 5 que não à toa com suas iniciais constrói uma onomatopeia de dor se alastrando década de 70 adentro que o filme brasileiro ainda estou aqui recupera do esquecimento a que gerações mais novas o relegaram.
Zumbis devoradores de humanos para transformá-los em novos zumbis criando um exército de seres asquerosos com o objetivo de crescer e crescer e crescer. O final é um anticlímax que, corridos 56 anos, permanece atual se nos lembrarmos, – e não há como não o fazer diante da avalanche de barbaridades reveladas e rotuladas como “atos isolados” pelas autoridades -, da atuação sicária da polícia do Tarcísio.
Romero filmou em preto & branco. As fotos abaixo são coloridas. Se houver paciência para as observar, se perceberá que elas são resultado de trucagem. Irreais? A fotografia em si é irreal porque registra um momento morto; passou, acabou, não existe mais e aí se abraçarmos o solipsismo, poderíamos duvidar que existiu.
Mas não; o que essas fotos manipuladas mostram aconteceu e pode acontecer novamente e a trucagem está a serviço de enfatizar a sua monstruosidade. O aniversário do 8 de janeiro rápido se avizinha e é imperioso ter em mente e na ponta dos lábios: SEM ANISTIA.
A coluna d’agora nasce como resposta tardia à anterior, mas onde é aqui?
Vivemos todos na Matrix? A vitória apertada da frente democrática nos diz que, felizmente, não. Desafortunadamente, as forças reacionárias ultra direitistas permanecem vigorosas e o risco dum maior retrocesso civilizatório que aquele perpetrado pelo pior governo da república, continua alto.
É natal e essa sequência de fotos feitas num supermercado chique nos conta uma história tão aterrorizante quanto a da noite dos mortos vivos.
Logo na sua entrada, destacam-se os símbolos mercantilistas dessa celebração exógena: a árvore e o boneco sorridente dum papai noel. O detalhe constrangedor é uma cesta repleta de cartas para esse fantoche engalanado; mais especificamente, do que nos contam essas cartas escritas por crianças.
Cada uma delas é o relato duma vida de dor, de privação material, de falta de perspectiva dum futuro minimamente confortável. Que país é esse que se recusa a olhar e melhorar a existência dessa gente que tanto sofre, que tão pouco tem a ponto de enviar cartas pedindo presentes simplórios para um manequim vermelho gorducho, que lá no brega jeca deslumbrado Balneário Camboriú bem a propósito vestiu-se de verde amarelo ficando mais próximo de ser uma assombração zumbi do que um ser humano empático? Falta amorosidade não apenas nessa época de se trocar figurinhas e mensagens melosas, mas o ano todo, o tempo inteiro nessa nação que por pouco não reviveu pesadelo mais pavoroso do que o da noite dos mortos vivos houvesse sido reeleito esse ex-presidente genocida gatuno golpista que além de descerebrado, é desumano, é sem coração, é apologista do ódio.
A melhor das mensagens natalinas é a de José Saramago, autor do Evangelho segundo Jesus Cristo, nesse vídeo curtinho.