aqui a gente está pra ensinar, a gente está pra educar as pessoas

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artigo da coluna de opinião foto em foco

Márcio Pannunzio, texto & fotos

Frase de Julieta Ines Hernández Martinez vestindo a personagem Miss Jujuba em entrevista no YouTube, datada de 11 de maio de 2020. Nela se percebe o seu talento e a sua técnica apurada na arte da palhaçaria, ao assistirmos sua fala em meio a uma encenação tragicômica rica de expressividade.
Julieta era venezuelana e veio ao Brasil, logo ao Rio de janeiro, para estudar o Teatro do Oprimido. Por isso disse o que disse: era seu desejo que se fez profissão de fé, exercitar a arte não apenas para entreter, mas também, desalienar.

O Teatro do Oprimido é escola que surgiu capitaneada por Augusto Boal durante os anos de chumbo da ditadura  militar. Tinha inspiração na didática Freiriana que deslumbrou o mundo.

Julieta veio em 2015, dois anos depois das jornadas de junho de 2013 quando multidões sem rumo tomavam as ruas e estradas do Brasil num protesto grandiloquente, porém de corpo disforme pois sem pé e muito menos, cabeça, querendo reclamar de tudo e de nada. Essa insatisfação esquizofrênica foi força motriz da extrema direita brasileira para que, zurrando estridente e alucinadamente, desencadeasse acontecimentos perversos culminando no 8 de janeiro de 2023.

Feito filho pródigo que ao lar torna, Julieta voltava para seu lar venezuelado e pelo caminho encenava seu espetáculo minimalista “Viagem de bicicleta de uma palhaça só, sozinha?” .
Feito frade franciscano, Julieta, tão pobre, estava praticamente o tempo inteiro, com os que são pobres. Fazendo rir gente dum Brasil marginalizado que a casa grande se esforça em ocultar.
Julieta fazia arte não em escala planetária como hoje fazem e por tanto querer assisti-la até morrem seus fãs maltratados em shows milionários e pirotécnicos, celebridades que se imaginam artistas enriquecendo nababescamente enquanto escravizadas pela indústria do entretenimento frívolo.

De vez em quando, se apresentava em teatro. E o suporte do palco com sua iluminação celestial a fascinava. Entretanto, seu dia a dia não tinha as luzes da ribalta e Julieta então se movia pelas bordas porque sua escolha foi a de levar arte para quem jamais entrou num teatro. Sua amiga Guadalape Merki nos conta que ela era muitas vezes, excluída de editais de cultura.

Aqui, cabe abrir um parêntisis.
Seria excluída do único edital de fomento que teve Ilhabela. Lançado em 2022, impresso era um catatau de 38 páginas. Documento Frankenstein; uma colagem disparatada de trechos de diferentes certames. Por essa razão, exigia contrapartidas somente possíveis com orçamentos mais generosos e não com os valores limitados em tantas áreas diversas. Além disso, o jurado sem qualificação acadêmica relevante e com pouca e inexpressiva vivência em avaliar processos seletivos, justiça medíocre fez aos inscritos que se sujeitaram a cobranças draconianas da secretaria municipal de cultura.  A despeito disso, fantástico é imaginar uma Ilhabela onde se privilegiasse fazer arte democraticamente, dando protagonismo a sua classe artística.

Poderia ser real, não sonho. Mas se a política empoderada tem sido a de menosprezar a cultura e a educação, como tornar esse sonho realidade?

O orçamento de Ilhabela é bilionário; para 2024 a estimativa é de R$ 1.125.000.000,00. Dinheiro, faz tempo, não falta. Ilhabela entrou no folclore da imprensa por patrocinar escola de samba da capital paulista, concurso de miss e por contratar músicos e bandas de alto quilate. Saíam da ilha remunerados à altura da fama. Os artistas viventes da terra no entanto, ficavam e continuam ficando mesmo a ver navios. Em 2023, não houve edital de fomento mesmo havendo a sua cobrança pela classe artística da cidade e, recentemente, a delegação de Ilhabela enfrentou dificuldades para participar da Conferência Estadual de Cultura, cujo tema central era, justamente, “Democracia e direito à cultura”. Rafael Antonio Baldo, Procurador do Ministério Público de Contas do Estado de São Paulo, em parecer assinado em 27 de junho de 2023 nos conta que:

Conforme reiteradamente apontado por esta e. Corte de Contas nos relatórios e pareces dos últimos anos da Prefeitura Municipal de Ilhabela, é absolutamente desproporcional que um município de pouco mais de 36 mil habitantes e com uma arrecadação superior a R$ 770 milhões, o que representa um PIB per capita de R$ 21.309, sequer seja capaz de aperfeiçoar sua gestão operacional. Como bem ilustrado pela Fiscalização, no setor de educação, área de extrema importância para o desenvolvimento local, em 2021 o gasto anual por aluno matriculado, na média das cidades paulistas, foi de R$ 12.281,72, ao passo que o gasto em Ilhabela foi de R$ 22.122,27 (isto é, 80% acima da média). Apesar disso, observa-se que a nota do i-Educ não apresentou evolução, refletindo falhas graves como falta de vagas em creches, ausência de AVCB em escolas da rede de ensino, necessidade de reparos e reformas em quase todas as escolas, contratação precária de professores, entre muitas outras impropriedades.

Parêntisis fechado.

Numa sociedade onde boa parte dos seus integrantes abraçou o ódio sepultando a bondade, artista é visto como crápula, ladrão do estado, vagabundo . Artista de rua vive situação pior; é considerado primordialmente um vadio, um inútil, um pedinte, um estorvo, especialmente por esses brasileiros e brasileiras da estirpe dos que berravam na porta de quartéis a eles solidários pelo Brasil de norte a sul, leste a oeste, até em tiro de guerra e escritório da marinha e lá em São Sebastião ainda deles temos cheiro e indigesta lembrança.

Pouco importa que esses artistas atuem sob sol forte ou chuva gélida e na neurastenia dos sinais fechados. Motoristas levantam o vidro e desviam o olhar porque julgam preconceituosamente não estar diante de artistas, mas de craqueiros que poderiam assaltá-los.

Quanta coragem esses artistas têm, para ganhando uma miséria sofrendo uma barbaridade, sujeitarem sua arte e a si mesmos a tamanha abominação…

Infelizmente, há desmiolados demais fazendo esforço desumano para interditar a arte de rua. Um deles foi Flávio Bolsonaro, vitorioso na proibição da apresentação de artistas no metrô do Rio de Janeiro; outro, em São Paulo, foi João Doria que escolheu cobrir de cinza o alegre colorido dos grafites da avenida 23 de maio.

Por falta duma lei federal que normatize o trabalho dos artistas de rua, proliferam pelo país, leis estaduais e municipais que agridem essa arte e seus artistas. Ilhabela poderia há muito tempo ter uma lei que valorizasse e protegesse os seus artistas de rua da ação intimidatória de policiais e fiscais truculentos.
Existem na ilha artistas e produtores culturais se batendo por melhor espaço para a arte de rua. Mas quem nos gabinetes refrigerados do Palácio Sauna de Cristal Matagado ou nos da Casa da Princesa e da Fera aluminizada os ouve?

Julieta ia além de fazer arte na rua. Era artista plástica, – fazia bonecas miniaturizando pessoas com uma perfeição incrível -; era música, se aprentava cantando e tocando um instrumento característico da Venezuela,  o cuatro; era poetisa e por ter se formado como veterinária, às vezes socorria animais machucados ou necessitando de acompanhamento. Com tantas habilidades e tendo acumulado notável experiência de vida em suas andanças, poderia se pavonear. Longe disso, era uma pessoa acessível, duma humildade raramente vista e um vídeo feito por um curioso em Manaus ao encontrá-la e abordá-la, revela sua paciência e franqueza em responder suas perguntas.

Ela se deslocava de bicicleta. Uma opção de transporte que colide com a estupidez e a ganância de fabricar automóveis e mais automóveis atropeladores de pedestres e ciclistas, desperdiçando recursos que não se renovam para entupir as cidades deles e feito placas ateroscleróticas, adoecê-las.
Julieta retornava ao seu lar na Venezuela feito filho pródigo? Na verdade, não, posto que sua vida dantes foi monástica, abnegada, exemplar, benemérita.

É uma lástima, é de uma crueldade de Brasil Pátria Desalmada Brasil que essa existência tida como tão pequena na visão cínica dos que se locupletam na miséria e no infortúnio da maioria da população brasileira, tenha tido esse final trágico que nem vale a pena aqui relatar.

É um absurdo que apenas na morte Julieta evidencie a sua verdadeira e gigantesca estatura humana e artística e finalmente possa resplandecer como um exemplo pujante e presente de que sim, nós não devemos ter medo e que precisamos com urgência impreterível nos aventurar e fazer rir para que esse riso nos ensine e nos eduque além e acima de toda a adversidade.

Abaixo, fotos da Bicicletada por Jujuba, em Ilhabela, no dia 12 de janeiro.

https://www.marciopan.com/julieta-ilhabela

 

 

 

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