foto em foco: fé cega, faca amolada

fé cega, faca amolada 

coluna de opinião da série foto em foco

Márcio Pannunzio, texto & fotos

 

Existem lugares privilegiados para a fala à sociedade e são ditos privilegiados por causa da grande visibilidade que possuem e porque neles quem se aboleta e discursa detém o privilégio de estar ali. Nos casos tratados por esta coluna, o privilégio em questão veio por força do voto num e por meio de ordenação eclesiástica, noutro.

Foi do alto da tribuna da ilustre câmara ilhabelense que um seu eleito soltou inverdades à farta exigindo que seu eleitorado não votasse na “esquerda”. Entre aspas pois essa palavra na boca do orador perdeu sua essência, seu real significado. Apesar de advertido com firmeza pela presidente da câmara, da ilegalidade da sua pregação eleitoreira pública afrontar a lei eleitoral vigente, o edil zangado retrucou com soberba que os incomodados então o processassem. Seguro será que esse parlamentar ilhéu de estampa bastante parecida ao do deputado ex-presidiário marombado, cassado, famoso por destruir placa de rua em grotesca encenação de afronta ao movimento Marielle Franco, não enfrentará dos seus coleguinhas camaristas processo de cassação por falta de decoro como o injustamente imposto a vereador da oposição.
Pastores evangélicos, não todos, ressalte-se, fazem pregação semelhante ao desse orador e espanta que haja padres que repitam o mesmo. Relatos indignados de fiéis católicos a ponto dalgum virar denúncia encaminhada à Confederação dos Bispos do Brasil, dão conta de que isso aconteceu em missa justamente no dia do primeiro turno da eleição em igreja de Ilhabela. Fica difícil conceber que esse mesmo clero que teve em suas fileiras dom Hélder Câmara e hoje tem o padre Júlio Lancelotti possa abrigar empedernidos defensores do bolsonarismo usando o púlpito não como local de pregação da fé cristã, mas de imposição duma preferência política extremista que só faz despertar nas pessoas a sordidez espiritual e o ódio ao próximo.

Poderia bem passar por mera fanfarronice o ocorrido na tribuna da Câmara; no entanto, a situação é grave. A atitude do vereador como frisou a presidente da Câmara, desrespeitou a legislação eleitoral ao se corporificar como uma conduta vedada de agente público. O vereador fez uso da tribuna da Câmara Municipal de Ilhabela para a realização de um discurso eminentemente político, com proveito eleitoral, objetivando favorecer a candidatura de Jair Bolsonaro. Para averiguar a existência de delito, magistrado da área só vai precisar assistir o vídeo do discurso ora propagandeado por seu autor belicoso no facebook como feito grandioso, ao invés de ter sido, na verdade, uma incitação ao apedrejamento duma esquerda brasileira bicho-papão que só existe no mundo furibundo da terra plana, concitando o eleitorado a votar em Bolsonaro. Pretendeu-se transformar a Câmara Municipal de Ilhabela num cabo eleitoral bolsonarista e a TV Câmara em propagandista da candidatura da extrema direita.

A lengalenga urrada na tribuna com voz trêmula emulando o figurino dos discursos do ódio que infestam as redes sociais, é uma coletânea intragável de fake news a começar pela pregação amedrontadora do risco do Brasil virar Venezuela nas mãos do “governo de esquerda”. A realidade, bem outra, é que o  país caminha a passos largos e rápidos pra isso acontecer e nas mãos de um governo de extrema direita. Bolsonaro segue a mesma estratégia de Maduro: bajula, enobrece, pavoneia as forças armadas ao mesmo tempo em que agride e desmantela impiedosamente o poder judiciário e a imprensa e coopta, ao custo de o corromper, o poder legislativo.
O edil mete o sarrafo no MST se esquecendo que quem hoje invade e se apodera de terra pública com o beneplácito do governo são garimpeiros, grileiros e gente do agro lixo que, literalmente, põe fogo na terra brasileira.
O edil gritou que governo de esquerda toma o dinheiro do povo, ao passo que quem o faz agora em solo pátrio é o governo federal através do maior escândalo de corrupção da história da república: o orçamento secreto.

O edil reclamou que o “governo de esquerda” trata mal as mulheres, quando quem o faz reiteradamente é o seu líder mito Bolsonaro dando péssimo exemplo aos seus aduladores.

O edil lastimou que “governos de esquerda” deixam as famílias passando fome quando ainda estão vívidas as cenas impactantes e degradantes de brasileiros e brasileiras disputando osso e pelanca de carne num container originalmente destinado à fábrica de ração animal sob a indiferença do governo bolsonarista de extrema direita.
O edil se pôs na posição de defensor da liberdade se esquecendo que nos dias que correm, opositores do atual do governo temem falar de suas preferências políticas com medo de serem espancados e até assassinados; muita gente não torna pública sua escolha política a exibindo na fachada do seu lar e no vidro do seu carro por medo de sofrer vandalismo. Márcia Tiburi que escreveu o livro “como conversar com um fascista” se deu conta da pior maneira do quanto isso é difícil e juntamente com milhares de brasileiros perseguidos e ameaçados de morte pelos extremistas da direita, foi morar fora do Brasil. O influenciador Felipe Neto continua morando, mas explicou em vídeo recente que só sai da sua casa acompanhado por forte esquema de segurança e que, em nome  dessa segurança, achou melhor mandar sua mãe morar no exterior. Nesse mesmo vídeo, rememorou seu passado de antipetista radical, comentando que apesar das suas críticas contundentes, jamais sofreu qualquer ameaça a sua liberdade quando as fez. A  maioria absoluta da população não tem como  se proteger da maneira que se protege Felipe Neto. Então o que acontece é o que registra o vídeo do jovem preto e pobre sendo surrado e preso aos berros de “vai gritar Lula lá  na África!” Liberdade está em falta e sob ataque até mesmo em Ilhabela onde o vereador Raul foi covardemente agredido apenas por ter exercido o seu direito de fiscalizar a obra dum muro de arrimo construído por uma empreiteira contratada pela prefeitura.

O edil, não teve temor de ser rotulado de homofóbico ao descrever o seu banheiro público ideal, interditado a transsexuais.

Não temeu ser chamado de mentiroso ao repetir chavões preconceituosos sobre o governo Dilma, chavões esses há muito desmascarados pela imprensa e por institutos de verificação de notícias, como falsos.

Disse que “escola é  lugar pra criança brincar” e essa máxima tiro no pé atropelou seu feito mais vistoso, qual seja, o de apoiar e incentivar a construção ao custo de centenas de milhares de reais, duma escola cívico-militar em Ilhabela, onde a veneração à disciplina da caserna não deixará espaço pra criança alguma brincar livremente.
Não bastasse contaminar o ambiente da Câmara Municipal com sua bagaçada eleitoral virulenta, o edil por duas vezes, cinicamente, fez troça. Logo no início da sessão ordinária, fez questão de parabenizar a escolha do salmo 22 para a abertura dos trabalhos e enfatizou: “é um número muito bom”. Com a mesma retórica barulhenta de campanha concluiu sua alucinada explanação dizendo que “o salmo 22 caiu como uma luva!”.
Pois surrealmente, no meio desse salmo se encontra um apelo a deus que muitos, agnósticos e ateus inclusive, agora aos céus lançam em busca de temperança:

Livra-me da espada,
livra a minha vida do ataque dos cães.

Salva-me da boca dos leões,
e dos chifres dos bois selvagens.

 

Política e religião: essa mistura desanda.

 

“A boa política deve desarmar e não armar as pessoas. A boa política deve unir e não desunir. A boa política deve estimular o amor e não o ódio. A boa política deve reverenciar a cultura e não apequená-la.”

 

Esse pensamento foi fixado numa coluna de 2018 e permanece atual. Se escolhessem abraçá-lo, parlamentares insulares não cuspiriam perdigotos em sermões raivosos e, talvez, desembaraçados da bílis que turva não somente o entendimento, mas também a visão, enxergassem ao redor.

A foto em foco registrou quatro imagens que falam por si e dispensariam legenda.

Isso é Ilhabela: terra duma abissal desigualdade social entre turista rico e morador fuçador de lixo.

Isso é Ilhabela que não merece o seu nome por naturalizar a feiúra.

Isso é Ilhabela que desrespeita a cultura caiçara e empareda cruelmente sufocando um dos últimos exemplares da arquitetura colonial na sua principal avenida.

Isso é a Ilhabela onde se acumulam detritos gigantes duma polêmica obra milionária de revitalização de bairro que se arrasta lerda sem nunca terminar. Calçadas foram eliminadas, material de baixa qualidade foi largamente empregado; fato esse noticiado publicamente pelo vereador Raul da habitação. Empresário do bairro denunciou o caso no Ministério Público, mas o promotor decidiu arquivá-lo. Quando o primeiro morador ou moradora morrer atropelado, queixar pra quem? Pelo jeito, nem pro bispo.

Infelizmente, nesses nossos trevosos tempos, tribuna e púlpito têm se prestado a ser lugar privilegiado não de discurso sadio e de pregação caridosa da crença religiosa; têm ambos se prestado a difundir a bizarrice duma fé política obtusa e cega. E essa, bem nos ensina a história, é pedra boa para bem amolar a faca que apunhala de morte o respeito e o amor ao próximo e, não sendo impedida pela mão forte da cidadania, assassina o estado de direito e a própria democracia.

 

o desabafo de Felipe Neto

 

Numa singela palavra, o bom conselho. Reza a prudência, que antes de falar, se fizesse isso, de coração tranquilo e mão desarmada.

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