Essa semana calhou de ajuntar como rotineiramente se faz ano após ano, duas datas de aniversário no calendário ilhabelense: no dia 3, o da cidade e no dia 7, o da independência. Por isso ficamos atordoados pela berraria de incontáveis efusivos parabéns para Ilhabela e parabéns para o Brasil por tantas faces teatralizadas deformando rostos a ponto de não o serem mais humanos; todos eles das nossas inúmeras autoridades e daquelas e daqueles que desejam um dia o ser, todas sorridentes tão alvos dentes num paradoxo de que mais do que sorrir, querem mesmo é nos morder e engolir.
Coincidem os festejos com os novos retrógrados tempos patrioteiros e de fanatismo religioso incensados por esse lema disparatado de brasil acima de tudo deus acima de todos. Porque não existe um único deus por serem tantos e tão diferentes os nossos deuses e deusas e para muitos de nós, os ateus e as ateias, esses deuses e deusas sequer existirem e porque esse Brasil por cima, é um pesado céu trevoso que agora, ao desabar cruelmente fustigado pelo autoritarismo e pela ignorância, nos esmaga e nos sufoca.
O feriado maior foi ardorosamente comemorado em Ilhabela e essa festança bárbara foi exibida em rede televisa nacional, nesses bastante populares canais de apresentadores de maus modos e péssima educação metidos a paladinos da moral e dos bons costumes. Infelizmente, gritando impropérios contra Ilhabela, tendo como pano de fundo uma filmagem trêmula de bêbada de celular mostrando uma enorme aglomeração de gente seminua ensandecida numa dança dos infernos; todos sem máscara e todos cuspindo uns nos outros embolados na praça que é o coração do centro histórico.
Sim, a do Coronel Julião de Moura Negrão, logo ele, herói insular cujo esforço justamente emancipou Ilhabela para essa celebração todo santo ano.
Por causa dessa monstruosidade, a prefeitura de Ilhabela estuda decretar uma lei seca, tipo aquela da gringolândia na era do Al Cappone. E vem à lembrança o inesquecível e atabalhoado decreto de interdição da travessia somente aos moradores da cidade durante os meses iniciais da pandemia do coronavírus, permitindo, no entanto, tudo o mais passar sem qualquer barreira sanitária. Pois os bebuns espertos não vão comprar bebida alcoólica nos comércios insulares proibidos de vendê-la. Trariam farta quantidade dela do continente e ainda ganhariam um bom dindim vendendo o que sobrasse para os bebuns burros, o que estimularia o empreendedorismo local nesse momento de vacas magras. Convinha ser aproveitado o embalo dessa sanha regulatória e ser baixado de vez decreto municipal criando lei eugenista, barrando peremptoriamente a entrada na ilha das mil maravilhas da pobraiada farofeira e de quebra também dos caramujos que fazem dela um criadouro de vagabundos.
Em tempos antigos a terra de Ilhabela foi um matagal danado de fechado que nos conta Nivaldo Simões era chamado de maembipe pelos indígenas; um lugar de passagem, lugar de troca, sem povoação fixa. Foi depois descoberto por intrépidos navegantes portugueses capitaneados por Gonçalo Coelho com a companhia do cosmógrafo italiano Américo Vespúcio na bem mais distante data de 20 de janeiro de 1502.
No século XIX tinha gente habitando essas bandas e no histórico dia de 3 de setembro de 1805, graças à ação do ilustre coronel que na época era um simplório capitão se destacando entre os poderosos da região, o grupamento humano que era tido na modesta classificação de capela foi elevado ao status de vila, a Vila Bela da Princesa, nome esse escolhido numa subserviente atitude laudatória ao mandachuva da ocasião , – o rei D. João IV de Portugal, homenageando a sua filha princesa mais velha e talvez nesse ato fundador do município tenha nele se consolidado o hábito de venerar mandatário patrimonialista.
Todo ano Ilhabela festeja esse velho feito e já contabiliza nisso, duzentos e quinze vezes. Na história maior do mundo, esse tempo nem espirro ou piscar de olhos é.
Entretanto, desse hiato temporal não se pode falar que o povoado ficou a ver navios no canal de São Sebastião. Muito ao contrário, ele se empenhou numa gigantesca labuta: a de desmatar boa parte da ilha para plantação de café e cana tocada a mão de obra escrava. Quem olha com atenção fotografias do passado logo percebe que esses morros hoje tão florestados eram pelados de dar dó.
Com a proclamação da Lei Áurea e o ocaso do café, a natureza fez seu trabalho muitíssimo maior de recuperar o que os ancestrais ilhabelenses cortaram, queimaram, exauriram e hoje a papelada oficial da cidade vem com o orgulhoso dizer “Ilhabela” cidade brasileira campeã de preservação da Mata Atlântica.
Pena que não se possa papagaiar dito parecido em relação à balneabilidade das suas praias durante a temporada.
Ilhabela é das cidades uma das mais ricas do Brasil e por isso deveria ter o seu índice de desenvolvimento humano, o que mede a sua qualidade de vida, entre os dez primeiros do país, no mínimo.
No mínimo.
Mas não.
Assim como esse de balneabilidade, ele é catastrófico.
Fica disso uma incômoda questão: essa festança toda ruidosa nas ruas, nas redes sociais e nos impressos virtuais e físicos a serviço da publicidade oficial, afora felicitar uma emancipação arcaica, se presta a comemorar o que?
Quem sabe, o número recorde de eventos milionários entre shows, feiras e concursos de miss; o número recorde de desapropriações de imóveis; o numero recorde de obras que trocam seis por meia dúzia; o número recorde de estátua de assombrar assombração; o número recorde de tendas montadas por tudo quanto é canto; o número recorde de escravizados pelo airbnb e booking que transformaram suas casas em abrigo de vândalos que infernizam bairros inteiros com a sua baderna insuportável; o número recorde de moradores contaminados pelo coronavírus superando o da vizinha e mais populosa São Sebastião; o número recorde de antenas gigantescas de telefonia infestando a cidade e conspurcando marcos de paisagem; o número recorde de jornalecos chapa-branca; o número recorde de navios de cruzeiro que na ilha fundearam despejando milhares de turistas doidos por comprar lembrancinha; o número recorde de participação municipal em feiras de turismo no mundo inteiro; o número recorde de processos judiciais nas costas daqueles que nos governaram com paternalismo e autoritarismo…
Comemorar o quê?
Quem sabe essa profusão estonteante de caras sorridentes nas redes sociais e nos impressos que muito em breve se espalharão feito santinhos pelas ruas de Ilhabela as emporcalhando e entupindo os seus bueiros; todas essas amigáveis caras implorando pelo seu voto, leitor ou leitora; para ganharem o seu quinhão, o seu lugar ao sol caridoso do poder e das robustas finanças municipais que agora a proximidade das eleições faz com que se lancem em luta intestina uns contra os outros e as outras numa ânsia, num atropelo de se venderem como artífices duma mudança que, afinal, é a mesmíssima daquela defendida pelo nobre Tancredi no romance o leopardo: se quisermos que tudo continue como está, é preciso que tudo mude.