Por Márcio Pannunzio
O fato de Ilhabela estar apartada do continente estimula fantasias. A primeira é sobre segurança. Tola ilusão. Bandidos mais de uma vez atravessaram de lancha estourando caixa de banco em ações cinematográficas que pouco ficariam devendo para as que acontecem no continente.
Havia e ainda há quem diga que o Brasil está do lado de lá e que na ilha, a realidade é outra: bonita, tranquila, feliz . Essa, sem dúvida, pode ser elencada como a fantasia maior; no entanto, o Brasil é aqui, sim. Não se consegue fugir da insanidade duma nação falida chafurdando no ódio simplesmente cruzando uma língua d’água estreita. A ilha espelha o país.
Pedestres, ciclistas, motociclistas que atravessam esse braço de mar sentem literalmente na pele o que é ser cidadão de terceira classe. O tormento começa, tanto do lado continente quanto do lado da ilha, dentro das toscas construções que abrigam as pessoas. Não há nelas o mínimo conforto. São quase insalubres; o telhado baixo de eternit, do mesmo tipo comum em obras humildes, em São Sebastião, torna o lugar um forno nas épocas de calor. Na ilha as telhas são de barro, o que ajuda a diminuir um pouco a temperatura. Mas em ambos o que se enxerga é um local de se aprisionar gente com enorme desconforto e gritante desrespeito. Estão ali as grades onipresentes estampando esse fato. E, bovinamente, todos se perfilam aguardando o momento de se lançarem em corrida de atropelo em busca de um espaço no assento rústico das balsas tão logo o funcionário da dersa abra uma pequena porta entre as ferragens.
Na balsa ficam expostos ao sol, à chuva, ao barulho infernal dos motores e à fumaça fedorenta que eles soltam enegrecendo tudo ao seu redor.
“O Brasil é o único lugar que passou da barbárie à decadência sem conhecer a civilização”- dizia no século passado Levi-Strauss. É juízo forte porém suave. Quem usa o serviço de travessia sem estar a bordo de automóvel na verdade crê que nunca se deixou a barbárie; continuamos vivendo sob sua tutela. A casa grande e a senzala insistem em continuar a existir e reproduzem no dia a dia nossa colossal iniquidade.
E justamente esse povo tão pobre e sofrido a quem os políticos de todas as ideologias prometem mundos e fundos é o mais penalizado. Quem é rico ou remediado fica no conforto do carro da propaganda; quem não é se vira como pode num espaço que se assemelha ao porão podre dos navios negreiros.
– Ora, mas temos agora uma linda lancha para pedestres! – pode alguém retrucar. Mais linda, sem dúvida do que os “aquabus” de R$ 4.500.000,00, – cadáveres insepultos tal como a milionária ruína do Centro de Convenções & Teatro Municipal de Ilhabela – que dia desses vão se desmanchar sem terem singrado milha alguma de mar. Outra ilusão que se encaixa na categoria “para inglês ver”.
A nova bela lancha navega quando bem entende e assim os que têm pressa continuam se valendo das balsas ou seja, praticamente todo mundo.
Quem se muda para Ilhabela encantado por essa história dela não fazer parte do Brasil, já na própria experiência da travessia percebe que isso não passa de uma lenda e que essa situação tão corriqueira como o é de permanecer meia hora embarcado revela a cruel desigualdade social do nosso país. Na balsa estacionam carros de sonho passando da casa do milhão ao lado de gente com chinelo puído de dedo que nunca acumulará em vida por mais que trabalhe tamanho dinheiro e se espreme e esconde invisível tentando se abrigar do clima inóspito, do barulho, da poluição e mesmo também, do deslumbramento pueril dos turistas.
Não obstante, foto de balsa é bacana e tem lugar na coluna. Nós as vemos com um travo na garganta. Não há beleza que encante no retrato da indigência a que são relegados tantos brasileiros, os não nascidos na casa grande.
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