audiência da Vergonha & sessão vergonhosa
coluna deopinião da série Foto em Foco
Márcio Pannunzio, texto & fotos
No terço final do século passado, a provinciana São Sebastião frequentava noticiário nacional. Não pela beleza tranquila das suas praias, pelo verdor úmido da sua mata, pela graciosidade do seu centro histórico, pela vida que vivia ainda devagar no lento caminhar das suas ruas e praças antigas. Nada disso.
A cidade assustava o país por causa dos constantes acidentes redundando em vazamento de petróleo. Emporcalhavam o mar do canal, obscureciam a areia das praias próximas duma meleca gosmenta que só da sola do pé saía a força de muita esfregação banhada fartamente a removedor. Fauna e flora marinha eram as vítimas preferenciais; mas a São Sebastião, coitada, também se sujava e bastante nessas catástrofes pois acabava tendo seu nome associado a elas.
O Terminal Almirante Barroso tornou-se operacional em 1969; o início da sua construção remonta a 1963 e essa história se inscreve numa maior que é a da Petrobras. Foi uma obra grandiosa que além de avançar pelo canal, ocupou uma área urbana enorme bem à vista de todos que circulam pela avenida enchendo os olhos com a profusão de tanques de armazenamento de combustíveis, alguns deles, embelezados por pinturas de fundo do mar, nos passando a ingênua ilusão de que no interior desses cilindros rotundos habitam peixes e golfinhos.
Na madrugada de 20 de abril de 1977 o petroleiro Cairu colidiu com o oleoduto do píer principal do terminal quando realizava manobras de atracação e provocou um incêndio que despertou a cidade e deixou a população em polvorosa, apavorada diante do medo de que ela inteira explodisse. Ruas ficaram congestionadas de carros querendo todos fugir ao mesmo tempo.
Em 4 de junho de 1984 houve transbordamento de um dique de contenção provocando a liberação de líquido inflamável no córrego do Outeiro. O incêndio de vultuosa proporção subsequente aterrorizou os moradores, causou danos ambientais e materiais e liquidou uma pessoa. Dado surreal é ter acontecido justamente na véspera do dia do meio ambiente.
Petroleiros caquéticos causavam a maioria dos vazamentos. O primeiro data de 1974, do Tarik Maru, seguido em 1978, pelo do Brazilian Marina. Daí em diante foram frequentes e por conta disso o Litoral Norte foi considerado um dos mais poluídos por hidrocarbonetos do mundo na década de 80. O ápice dos desastres aconteceu em 30 de dezembro de 1991 com a explosão do monstrengo Alina P . O estrondo foi tão forte que pareceu trovão e deixou incrédulos os que o ouviram porque o dia era ensolarado. Matou um tripulante e hospitalizou outros com queimaduras de primeiro e segundo grau.
Meus cartuns publicados na Folha da Cidade se esforçavam em fazer humor com essas situações dramáticas.
Uma delas ocorreu catingando barbaramente a cidade e mereceu também cartum.
Felizmente, a construção dos petroleiros melhorou como melhoraram as medidas de segurança do Tebar e os vazamentos que tanto prejuízo provocaram, foram diminuindo a ponto de não mais termos ocorrência deles, nem lembrança do mau cheiro de “Bauru com ovo podre”.
Entretanto, de tempo em tempo, ultimamente com menor lapso, um fedor de embrulhar estômago contamina o ar sebastianense. Merda e urina bovina num coquetel pestilento. Merda e urina derramadas em profusão pelas ruas e pelo porto de carretas vindas dos cafundós abarrotadas de vaca & boi feito vagões nazistas espremendo humanos tidos por impuros, destinados à matança tão cruel quanto a desse gado aprisionado. De vez em quando, além da merda e da urina, espalham também sangue, como foi espalhado na rodovia, na altura da serrinha da enseada, depois do tombamento de uma carreta com 90 animais; quatro morreram no local e dez foram executados.
Demorou pra que a humanidade se compadecesse do suplício dos que foram assassinados no holocausto.
Pelo mundo inteiro, felizmente pouco tardou, muitas pessoas, inclusive, de São Sebastião, se compadeceram do tormento que sofre o gado vivo para exportação e para bem esclarecer essa barbaridade, é obrigatório assistir o vídeo “Elias, o boi que aprendeu a nadar” divulgado pelo site exportação da vergonha.
Quem o assiste de mente aberta e coração afetuoso se choca e se indigna. Há, porém, gente de casca dura que, se chegar ao fim do filme, – será esse feito inesperado -, vai retrucar que isso é mimimi; que esse gado se cria e se mata pra comer e que há situação desumana mais urgente pra se olhar e resolver.
É certo que elas existem; se olharmos uns passos poucos do navio de gado tão inóspito quando os negreiros do passado escravocrata, veremos uma mambembe construção mista de tenda e barraco onde se empilham seres humanos que aguardam a balsa ou a lancha. Lá tem uma faixa institucional gigante baba ovo nos contando que a biliardária Ilhabela gasta mais de R$ 12.000,00 por mês para manter esse lugar horroroso que, por suprema ironia, vem a ser a porta de entrada duma ilha que se papagaia como bela. O teto baixo de Eternit sufoca pensamento, aniquila sonho; os bancos de madeira achatam a bunda, torturam a coluna. Pra completar, grades de cadeia por todos os lados. As pessoas aguardam em passividade bovina o momento crucial em que um funcionário mal humorado chegará para, numa atitude indiferente, enfim libertá-los daquela clausura calorenta, friorenta ou molhada, conforme o humor do clima.
Continuam sofrendo as famílias traumatizadas pelo desastre recente que tornou São Sebastião manchete nacional: a tragédia da Vila Sahy. Tragédia é nome cínico que se atribui ao de desgraça anunciada. Os ricos ocupam as idílicas praias; os pobres que os servem, se aboletam ocupando pirambeiras e buracos de áreas de risco, construindo vielas medievais que depois o poder público e os políticos clientelistas da ocasião, sequiosos em criar seus currais eleitorais, se esmeram, feito beneméritos, em naturalizar. Algumas das famílias esperam, passado tanto tempo, um lugar de viver melhor que os cubículos forno de micro ondas que provisoriamente quase permanentemente hoje habitam. Outras não querem arredar pé das suas casas que estiveram na mira de demolição, mas que são infinitamente mais confortáveis do que essas celas de metal e telha frita ovo ou esses apartamentos minúsculos em prédios de arquitetura presidiária a que nunca caberia a frase de “minha casa, minha vida” por seu poder de adjetivar qualquer vida como ruim. Menos mal que pelo menos agora existem por lá sirenes que foram classificadas em berraria histérica em rede nacional como inúteis porque “não salvam vidas”.
Transcorrido um ano dessa nomeada tragédia que assassinou 64 moradores, quiseram a comemorar com um “show da reconstrução” porque “Deus traz essa mensagem: após a dor, vem a alegria”, posando então, além de festeiros do luto alheio, de mensageiros celestiais.
Evitando alongar essa coluna que se encomprida sem alcançar o seu cerne, um último e recente exemplo de situação desalmada: a ação de expulsar a caiçarada da baía do Araçá. Graças a Deus ( que me perdoem os agnósticos e os ateus ) que o bolsonarismo poderá no futuro ser tipificado como crime contra a pátria porque se fosse ele a triunfar a arruinando de vez, essa medida lhe serviria de inspiração pra enxotar a indiada da Amazônia sob o pretexto de que a estariam estragando.
O pensamento que constrói uma escala de valor onde pontuam em seu topo demandas humanas, fazendo pouco ou nenhum caso das que não pertencem a essa categoria, se ancora em falácias. Aflições da nossa sociedade devem dividir espaço com as que provocamos por soberba no planeta. Se as respeitarmos e as mitigarmos, fortaleceremos nossa capacidade de sermos mais empáticos, inclusive, com nossos semelhantes.
Mais de dois anos de pandemia de coronavírus nos ensinaram da pior maneira inimaginável que não somos o suprassumo do pedaço. Por meses e meses intermináveis ficamos, especialmente a fração majoritária da população que não era negacionista, que não era anticiência, que não fazia fé terraplanista, ficamos enclausurados em nossas casas só nos vendo a distância pelas telas de brilho cambiante de celular, tablet, monitor de notebook ou PC.
“Ou você ouve a voz de todos os outros seres que habitam o planeta junto com você, ou faz guerra contra a vida na Terra.” Ailton Krenak
Ficou essa lição inesquecível e ela nos lembra que não podemos ignorar a nossa crueldade contra os que não conseguem dela se defender; nos lembra que nós não devemos fechar nossos olhos a esse espetáculo selvagem que se encena repetidamente em São Sebastião; nos lembra que não é certo ignorarmos os urros de dor de agonia de aflição de desespero desses seres que antes de serem por nós devorados com sofreguidão em churrascos etílicos, estavam vivos e sofriam; que nos lembra que não há como como não sentir o cheiro forte desse gado apavorado e da sua bosta & urina derramadas com fartura em sua passagem pela estrada e ruas no caminho do porto.
Em 2018, uma liminar do juiz Djalma Moreira Gomes, da 25ª Vara Cível Federal de São Paulo, proibiu o embarque de animais vivos para exportação em todo o país; seria depois derrubada pelo Tribunal Regional Federal de São Paulo. O mesmo juiz em 25 de abril de 2023 proferiu nova sentença de proibição que não vigora porque é objeto de recurso.
Escreveu o juiz federal Djalma Moreira Gomes nessa sentença:
“O Brasil, há alguns séculos, não sem a oposição muito persistente dos senhores rurais, deveras tardiamente, renunciou, debaixo de rígida pressão da Inglaterra, concretizada através de sua marinha de guerra, a uma outra prática abominável, que se dava exatamente, como agora, singrando os mares. Patente que nos referimos ao tráfico negreiro, onde africanos eram trazidos de sua terra natal, para o Brasil, sob ferros, e submetidos, na viagem, a condições absolutamente inumanas, sem mínima atenção à dignidade daquelas humanas pessoas.
Não é possível que, tanto tempo depois, condutas análogas, malgrado agora envolvendo indignidade e sofrimento de animais não humanos, venham a ser justificadas, toleradas, ou até judicialmente suportadas, por razões de ordem estritamente comercial, até que, mais uma vez, tenhamos que nos render face ao repúdio internacional que, de certo, virá.”
A pequena área da plateia da câmara sebastianense foi ocupada sessão após sessão por ativistas contra o transporte marítimo de gado vivo a ponto de se imaginar que com tamanha presença, nalgum momento se incorporariam ao mobiliário do local, se tornando objetos inanimados feito as cadeiras onde se sentavam.
Porém, a dor desse gado e desse pessoal militante que não sai em destaque no jornal, inspirou o vereador Marcos Antonio do Carmo Fuly a apresentar um projeto de lei proibindo o transporte de carga viva pela cidade.
No dia 12 de abril aconteceu uma audiência pública na câmara municipal para debater o assunto dessa proibição opondo, de um lado, defensores dos animais e de outro, autoridades portuárias e veterinários a soldo dessa atividade e, de quebra, vereadores, um se passando por enfezado e apreciador do cheiro de bosta bovina, outro por distraído ou surdo.
Pra quem gosta de filme de tribunal e mesmo pra quem não é tão fã, mas se amarra em filme com conflito, filme com algumas interpretações caricatas a ponto de risíveis, assistir a sessão dessa audiência disponível no site da Câmara dos Vereadores de São Sebastião é um prato cheio e saboroso.
De um lado perfilaram-se George Sturaro, gerente de Investigações da Mercy for Animals no Brasil, Vânia Nunes, médica veterinária, pós-graduada em bem-estar animal, saúde pública e comportamento animal e Letícia Filpi, advogada, diretora jurídica da Agência de Notícias de Direito dos Animais e doutro, fazendo-lhe oposição, Luiz Felipe da Costa Santana, advogado e trabalhador portuário e Ricardo Barbosa, médico veterinário, presidente da Associação Brasileira dos Exportadores dos Animais Vivos.
da esquerda para a direita: Letícia Filpi, Vânia Nunes e George Sturaro, bom preparo e segurança/ print de tela
As falas de George, Vânia e Letícia foram esclarecedoras, seguras, serenas. A de Luiz Felipe foi agressiva, concluída aos gritos de que “SE A LEI PASSAR AQUI, NÓS VAMOS DERRUBAR NA JUSTIÇA, VAMOS CONTINUAR ALIMENTANDO NOSSAS FAMÍLIAS COM NOSSO TRABALHO APESAR DE VOCÊS COMEREM ALFACE, OQUEI”. Já Ricardo Barbosa foi polido; porém, em alguns momentos, foi evasivo e noutros, irreverente a ponto de despertar firme advertência de Vânia Nunes por mau comportamento profissional.
Ricardo Barbosa fala ao microfone e Luiz Felipe da Costa Santana está sentado logo atrás; o primerio, acossado, quase que cai da cadeira e o segundo, massageia o rosto cansado/ print de tela
Em sua explanação, Ricardo fez uso de fotos bastante parecidas com essas propagandeadas por publicidade grandiloquente do setor agropecuário na TV.
Ao nos lembrarmos dessa campanha nacional ainda onipresente que invade o aconchego dos lares brasileiros berrando tanto a ponto de derrubar os dorminhocos do sofá, convém atentarmos para o desabafo dos pesquisadores universitários Antônio Sidnei Ribeiro Cardoso, Raimunda Áurea Dias de Sousa e Leandro Cavalcanti Reis no artigo acadêmico “o agro é tech, é pop, é tudo: o (des)velar dessa realidade”, fixado abaixo.
“... ele não pode ser pop, pois promove a concentração de terra, seguida da violência no campo; não pode ser tech, quando sua produção se sustenta no uso de agrotóxicos que, contraditoriamente, provoca doenças; não é tudo, uma vez que o alimento, condição básica de existência, é transformado em commodities e passa a ser concentrado por um pequeno número de empresas.”
A oposição à proibição contou com a colaboração de dois vereadores que vestiam camisetas homenageando o porto de São Sebastião. O vereador Teimoso, insuflando os ânimos, vociferou na tribuna que “CHEIRO DE ANIMAL NÃO MATA NINGUÉM PORQUE SE MATASSE EU TINHA MORRIDO, JÁ NASCIA MORTO, QUE EU NASCI DENTRO DO CURRAL”. O vereador Pierobon em explanação comedida fechou posição com os contrários à proibição, reprisando seus argumentos que haviam há pouco sido implacavelmente desmantelados e por isso pareceu aos presentes que ele não prestou atenção ao debate ou por distração ou por problema auditivo.
Se no passado São Sebastião posou como cidade poluidora e quanto a isso nada pôde fazer, agora tem condições de evitar o repúdio nacional e internacional por ser cidade malvada, estigmatizada com o epíteto de “cidade de merda” pelo fato de cheirar merda e pela razão de se prestar a uma atividade execrada mundialmente. Uma primeira atitude para diminuir a possibilidade dessa repulsa gigantesca seria a aprovação dessa lei municipal pela câmara.
A sessão ordinária do dia 30 de abril foi encerrada por falta de quórum. Seis vereadores, desrespeitando o seu dever de terem comparecido, não vieram:
– André Pierodon ( Pierobon );
– Antônio Carlos Soares ( Daniel Soares );
– Diego de Castro Pereira Nabuco ( Nabuco );
– Edivaldo Pereira Campos ( Teimoso );
– José Reis de Jesus Silva ( Reis ) e
– Maurício Bardusco Silva ( Maurício ).
vídeo original compartilhado na página Jornalista Helton Romano do facebook
Antes do seu encerramento, o vereador Giovani dos Santos ( Pixoxó ) se dirigiu aos populares indignados que urravam VERGONHA! NÃO REPRESENTAM O POVO!! FALTA DE RESPEITO!!! e disse aos 52 minutos e 20 segundos do vídeo gravado dessa curta sessão legislativa:
“É o seguinte, nós temos hoje algumas matérias importantes pra ser votadas aqui no plenário: o PL que trata da carga viva, nós temos a PDL que trata da comunidade, do território do Araçá e nós temos também as contas rejeitadas do prefeito pra ser votada hoje. Esses vereadores que aqui não compareceram até o presente momento aqui, eu não quero tumultuar, não quero falar, mas preciso dizer pra vocês que pode ser uma estratégia deles pra não ter quórum, pra não ter quórum pra votar as contas hoje aqui no plenário.”
Quais seriam as chances de o PL da carga viva ser aprovado? Talvez a resposta a essa pergunta possa ser dada pelo jornalista Helton Romano do Nova Imprensa que conquistou em 25 de março importante prêmio conferido pela Associação Brasileira de Jornalismo Investigativo, na categoria de comunicação local justamente por artigos sobre a câmara sebastianense .
Caso o projeto seja arquivado por força dalguma manobra espúria, caso seja reprovado, as eleições municipais estão próximas e se os ativistas do bem-estar animal levarem a sério o lema “juntos somos melhores” e conseguirem sensibilizar os eleitores a elegerem políticos progressistas, haverá esperança duma segunda chance para que essa cidade que se nomeia honrando a memória dum santo martirizado não seja malvista mundialmente como um lugar de martírio.
Com o apoio da Lei Paulo Gustavo e a realização do Ministério da Cultura, Governo Federal e Arte Menor, o projeto ilha…bela foi concretizado, fortalecendo laços culturais e contando com o suporte da Prefeitura Municipal de Ilhabela e da Secretaria Municipal de Cultura.
ilha…bela é um livro digital reunindo 21 artigos sobre a cidade de Ilhabela, o Litoral Norte e o país publicados no Nova Imprensa. Leia online ou baixe a versão em pdf para ler quando estiver sem internet.
olalaporno.com shemale destroys her man.
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