Carnaval da Tragédia
coluna de opinião da série Foto em Foco
Márcio Pannunzio, texto & fotos
O carnaval de 2023 no Litoral Norte recebeu esse adjetivo que dói: tragédia. Foi uma tragédia anunciada, mas como sempre desgraçadamente acontece, ignorada, desprezada. É vívida em Ilhabela a lembrança dum morro que desabou no sul derrubando casas e interditando a estrada do sul em maio de 2019 . Outra chuva torrencial no fim de dezembro de 2021 rendeu vídeos no YouTube de audiência colossal de ruas transformadas em rio de corredeira de águas barrentas, marrons, onde carros submergiam e uma caçamba de entulho boiava sem rumo, colidindo com postes e paredes.
O estrago das chuvas na ilha.
A chuvarada que desgraçou São Sebastião, não causou dano tamanho na ilha, embora, dano considerável tenha causado. Houve alagamentos, queda de muros, erosão em ruas e no asfalto e abertura de crateras na estrada do sul com direito a fotos em rede nacional de carros engolidos. Felizmente, ninguém morreu.
Na cidade fronteira vizinha, o prefeito vestiu o colete da defesa civil e posou, contrito, com o presidente Lula, de quem foi opositor ao fazer campanha pela eleição de Bolsonaro, recebendo dele um abraço benção emocionado. Posou também ao lado do governador do estado Tarcísio, a quem dirigiu pesadas críticas. O momento trágico conclamava à conciliação os atores políticos divergentes exercitando uma política verdadeiramente virtuosa, levando ao pé da letra, numa coincidência inesperada, o lema do governo federal: união e reconstrução.
Numa entrevista à rádio Bandeirantes, o prefeito perdeu a compostura e partiu para o grito numa atitude naturalizada pelo bolsonarismo quando acuado num debate público; o âncora do programa, Luiz Megale, em vão, tentou restituir a ordem no barraco armado: “ou o senhor se acalma, ou a gente não tem como conversar”. Nessa altura da entrevista, ela simplesmente, acaba.
A pergunta que tamanha irritação provocou na autoridade municipal foi sobre a existência de sirenes nas área devastadas. Berrando a plenos pulmões, a resposta foi a de que sirenes não salvam vidas. Esse pensamento não é compartilhado por outros municípios; em Niterói, a Defesa Civil diz que “Estamos entrando no período de chuvas fortes e precisamos destacar que as sirenes salvam vidas. O sistema de alerta por meio de sirenes é acionado de acordo com um protocolo específico, referente ao volume de chuvas imediato e acumulado, sob o monitoramento ininterrupto da seção de meteorologia da Secretaria. Quando as sirenes são acionadas, as pessoas que residem em áreas de risco devem se dirigir para os pontos de apoio pelas rotas seguras previamente sinalizadas em suas comunidades.” .
Sirenes Salvam Vidas
O carnaval em São Sebastião foi cancelado.
Resgate áereo das pessoas que ficaram isoladas.
Ilhabela teve, não um, mas dois carnavais. De 10 a 12 de fevereiro e de 17 a 21 de fevereiro. Na propaganda oficial baba ovo, seria esse o maior carnaval do Litoral Norte. Não mentiu; ele foi por ter sido o único.
Bertioga, Ubatuba e Caraguatatuba, sob estado de calamidade pública, diante da tragédia que matou 65 pessoas e deixou 2.400 outras desabrigadas, cancelaram seus carnavais.
Ilhabela, não. Sob o pretexto de não prejudicar a “indústria do turismo”, ignorou-se o sofrimento de tanta gente caída em desgraça. É difícil imaginar que haja pessoas que consigam festejar, se alegrar, se embebedar sabendo que logo ali, doutro lado dessa linguazinha de oceano, morreram dum jeito terrível, quase uma centena de pessoas. Sepultadas vivas, soterradas num mar de lama e destroços, esmagadas, asfixiadas. Sambar sabendo que mais de duas mil pessoas ficaram desabrigadas, sem ter para aonde ir, sem ter nem como se alimentar apesar de fome não sentir diante da calamidade. Que tanta gente perdeu sua casa, construída com muito esforço, muita economia; perdeu seus móveis, perdeu seus eletrodomésticos, perdeu suas roupas, perdeu seus documentos. Sorte teve de não perder a vida, mas tanto perderam em vida que vivem sua vida agora na agonia indescritível duma vida que não se vive, duma vida que se afoga numa dor insuportável.
Indústria do turismo?
Ponto alto do carnaval de Ilhabela, o banho da Dorotéia permaneceu incólume. Festejar, sambar, se embebedar para, com estardalhaço, pular num mar que cheira morte, num mar que carregou a lama assassina, num mar que se molhou não só da chuva, mas também das lágrimas dos que perderam seus pais, seus irmãos, suas irmãs, seus tios, tias, primos, primas, seus amigos todos mortos, como puderam?
Ilhabela que soube tão bem ser solidária na copa se vestindo de verde amarelo e colorindo a avenida com esses banners ufanistas rastaqueras de incentivo à seleção, não foi solidária à dor dessa gente que, sim desta vez, saiu e bastante no jornal e cuja melhor matéria foi a do jornalista João Lara Mesquita, “Litoral Norte: pobres morrem de novo, e daí?”.
Escolher ignorar o sofrimento alheio em nome do turismo, foi tiro no pé.
Pois brasileiro, brasileira, estrangeiro, estrangeira humanista e solidária ao saber dessa atitude tão mesquinha, tão insensível vai é achar Ilhabela uma terra muito escrota, um local de falta de empatia comparável a do brasil pátria amada brasil completamente alienado do infortúnio nacional que foi a mortandade gigantesca causada pela covid, a ponto de torná-la objeto de zombaria, de falar desavergonhadamente “não sou coveiro” como fizeram impunemente tantas autoridades e bolsonaristas desalmados. E achando Ilhabela um lugar que pode até ser bonito mas é cidade dum governo desumano, vai é riscá-la do mapa e gastar seu dinheiro noutra freguesia que seja humanitária.
Essa força negacionista, reacionária da extrema direita que animou tanto discurso perverso e ainda anima, perdeu nas urnas e a esperança finalmente venceu o medo elegendo um governo de frente democrática.
Mas na terra ilhabelense, é como se ainda estivéssemos naquele cavernoso tempo. Seguem céleres obras de asfaltamento de ruas onde havia broquetes de concreto; impermiabilizadas, serão leito ótimo para enchentes futuras. A ocupação urbana de áreas de risco está espalhada pela ilha em encostas e buracos, à vista de todos e há tanto tempo se inseriu na paisagem que ninguém nem mais a enxerga.
O Espaço Cultural Pés no Chão lotou seu teatro com moradores da ilha, para assistir uma reunião aberta da sociedade civil que se intitulou Até Quando?! no sábado, 25 de fevereiro. As pautas desse encontro foram inspiradas pela tragédia ocasionada pelas chuvas e destacaram a importância da ação coletiva e em rede, o panorama do planejamento urbano, plano diretor, áreas de risco e os relatos da situação dos bairros depois do temporal. Várias organizações participaram, entre elas, a Associação Elementos da Natureza, Instituto Ilhabela Sustentável, Grupo Organizado Semear, Coletivo Educação, Coletivo SOS Mangue, Associação Amor Castelhanos, Instituto Verde Azul, Instituto Bonete.
Num mormaço cruel, abrasador, os presentes sonhavam e se encantavam com uma Ilhabela socialmente justa e responsável, com uma Ilhabela plural e sustentável. Porém, lembrando os versos de Caetano:
” E quem vem de outro sonho feliz de cidade
Aprende depressa a chamar-te de realidade
Porque és o avesso do avesso do avesso do avesso”.
Existe em Ilhabela gente capacitada não apenas para sonhar, mas para tornar seus sonhos reais construindo uma cidade melhor. A realidade contudo, é que essa gente não tem espaço dentro da estrutura do poder econômico e político que controla a cidade. Suas propostas colidem e se esfacelam diante dum poder executivo hipertrofiado e dum poder legislativo vassalo, submisso a esse poder executivo que por ser, tão poderoso, atua com autoritarismo e destempero atropelando a tímida oposição que uns tão poucos e tão frágeis lhe fazem.
Até Quando?! no Espaço Cultural Pés no Chão.
Não é a indústria do turismo que enriquece Ilhabela; é a do petróleo, com sua morte há tempos decretada. São os royalties do petróleo que transformaram a cidade numa das mais ricas do Brasil. Essa riqueza, a beleza e a felicidade, o bem-estar que ela poderia proporcionar aos moradores e visitantes, todavia, só se enxergam nas placas onipresentes da publicidade oficial espalhadas pela orla inteira. Nelas existe um Éden, uma Pasárgada. Fora delas, são praias e cachoeiras poluídas, calçadas inóspitas, lixo derramado pela cidade, mato crescendo descontrolando, ruas esburacadas, escolas precárias, profissionais da educação desrespeitados e desvalorizados, transporte público deficiente, falta de água e falta de saneamento básico, praças desmanteladas, cultura órfã, urbanismo e paisagismo urbano medíocres, turismo predatório, absurda desigualdade social, especulação imobiliária desenfreada, obras, obras e mais obras de má qualidade que nem bem são inauguradas e já demandam reforma, enorme feiúra das edificações, maior feiúra logo na rotatória de entrada bistecão de inox da cidade que foi projetada originalmente por Burle Marx sendo depois terraplanada quando nela eram exibidas duas esculturas de Frans Krajcberg de pronto assassinadas, pedaço de praia transformado em Jardim dos Horrores ou Praça do Martírio com estátuas alugadas pelo dinheiro púbico, áreas de risco ocupadas se perpetuando e se tornando cada vez de maior risco, tudo numa sucessão de malfeitos que crescem e se avolumam pela cidade e pelo tempo a despeito de existir dinheiro e muito para evitá-los e corrigi-los, construindo uma cidade muito melhor, inclusive, verdadeiramente humana a ponto de se compadecer com a desgraça alheia e não festejar o carnaval num momento em que todas as demais cidades a sua volta se entristecem e se enlutam.
A Ilhabela perfeita só existe nos banners publicitários da avenida.
Enfim, essa é uma história que não vem de agora, mas de muito antes. Muito jornalista sério se esgoelou a revelando e criticando.
Nivaldo Simões que escreveu com destaque no finado e saudoso Jornal Imprensa Livre, de quem o Portal Nova Imprensa é sucedâneo, foi um deles. Nivaldo morreu. Seus textos se perderam numa época em que a internet não tinha o alcance de agora. Nivaldo não nasceu na ilha; não era caiçara. Mas amou tanto esse lugar que era como se a ele pertencesse desde sempre.
Para contar essa história sem meias palavras nem meia verdade, precisamos recorrer ao melhor e mais corajoso jornalista, que não vive na ilha, mas fora dela e é novamente ele, João Lara Mesquita em recente e longo artigo, “Litoral Norte, SP: nossa geração será cobrada”.
P.S.: em respeito a dor de tanta gente próxima, a foto em foco sai sem foto do carnaval; foto alguma foi tirada. A coluna demorou para sair não por falta de assunto, mas por falta de tempo para abordá-los. O tempo foi todo ele refém doutro trabalho, o projeto Márcio Pannunzio – Quatro Décadas apoiado pelo Governo do Estado de São Paulo, Secretaria de Cultura e Economia Criativa, Programa de Ação Cultural. Como o seu nome revela, é de comemoração de mais de quarenta anos de carreira de artista plástico e fotógrafo do articulista. Exposição homônima acontece no Museu de Arte e Cultura de Caraguatatuba e será prorrogada além do dia 15 de março; aproveito para convidar os leitores a visitá-la enquanto está em cartaz. Informações mais detalhadas podem ser encontradas no site www.quatrodecadas.com