foto em foco: pandemônio na pandemia

Pandemônio não é o masculino de pandemia; seu significado é o de confusão, alvoroço. Que foi o que vivenciamos durante a curta campanha eleitoral deste ano que fez triste história.

As ruas foram tomadas pelos candidatos e seus apoiadores pagos com verba pública sujeitos ao trabalho cretino de ficar agitando bandeiras ocasionando o estrangulamento nas vias de maior trânsito. Estimulando a aglomeração de pessoas, muitas sem qualquer precaução com a pandemia, essa sim, de significado planetariamente conhecido.

Por conta dessa bagunça de gente irresponsável e sem noção, vivemos agora uma segunda onda de intensa contaminação do coronavírus na ilha, com um aumento expressivo a ponto de demandar a construção às pressas de um hospital de campanha no estacionamento do hospital Mário Covas e a ponto de criar uma barreira sanitária na balsa logo num final de semana em que houve um concorrido concurso público em Ilhabela.
Muitos dos que entraram na estatística do aumento da doença devem ter sido alguns dos que efusivamente participaram das campanhas.

E da comemoração da vitória. Um vídeo postado nas redes sociais mostrando a baderna que transformou a rotatória da Barra Velha em praça de guerra foi campeão em despertar o assombro geral Brasil afora nos comentários que berravam coléricos sobre a completa falta de cuidado sanitário da galera de lambe botas do poder da ocasião fazendo fila dançante de beija mão já em busca duma sinecura nessa ilha cuja prefeitura é a maior e a melhor das empregadoras.

As fotos abaixo destacam a presença do que foi essa eleição que renovou quase que a câmara inteira de vereadores de Ilhabela.

Pela cidade toda, pelos seus mais recônditos caminhos e seus lixos se esparramaram os seus restos: seus panfletos, seus santinhos, seus folhetins repletos de sorrisos, poses sensuais, posturas varonis, mímicas de positivo e paz & amor e inacreditáveis promessas de paraíso terreno agora se desmanchando com rapidez na convivência forçada com porcariadas diversas indigestas, entre elas, papel higiênico e modess usados e merda abundante de cachorro.

Pandemônio foi o que aconteceu no final de semana do dia 12 de dezembro, merecendo reportagem na Veja São Paulo. Uma enorme fila formou-se na balsa de São Sebastião por causa da implantação de uma barreira sanitária. Essa medida não seria inoportuna frente à necessidade de se controlar a pandemia. Infelizmente, a julgar pelas declarações das autoridades insulares, ela expressava antes disso um claro desejo punitivista contra o turismo de um dia.

O fim de semana escolhido para inauguração da fiscalização de entrada foi justamente o da realização de um concurso público da prefeitura de Ilhabela; quarenta e duas vagas com salários variando entre R$ 3.914,64 e R$ 6.035,07, disputados por 6.840 pessoas.

Daí choveram a cântaros vídeos irados nas redes sociais; seus autores se esganiçando na mesma gritaria que fizeram quando participaram das carreatas negacionistas, quando participaram da célebre carreata dos desalmados. Vídeos pulularam mostrando essa gigantesca fila como se fosse toda ela de turista de um dia; demonizando seus resignados integrantes como fossem eles a escória da humanidade.

Volta e meia volta à baila essa polêmica do turismo de um dia. Todos os mandachuvas da cidade sempre enfatizaram com seriedade epistolar que o turismo é a fonte primordial de receita de Ilhabela.

Se assim é, por que cargas d’água enxovalhar o turismo de um dia? Não se justifica o argumento de que ele não traz renda ao município. Não existe pesquisa abalizada que comprove essa tese rastaquera. É certo que o turista de um dia gasta menos que o exibicionista perdulário. Entretanto, gasta. É uma água no mercado; uma quentinha no restaurante; uma lembrancinha do artesão que vende barquinhos com o nome de Ilhabela e por aí vai.

Essa gente enfrenta um enorme desconforto viajando de madrugada para vir tomar picada de borrachudo se banhando em praia imprópria sobre o olhar recriminador de morador e de comerciante que se portam como proprietários do pedaço.

Merecia isso sim ser bem recebida pelo amor que verdadeiramente tem por Ilhabela; amor bastante diferente do papagaiado pelos slogans ufanistas de marqueteiros de araque a soldo dos cofres municipais abarrotados não do dinheiro do turismo, mas o de royalties do petróleo de vida breve.

Turistas de um dia eram igualmente os passageiros de cruzeiros que desciam aos milhares na Vila, formando filas muito, mas muito maiores que essa registrada nos vídeos compartilhados com nojo. A diferença é que, por muitos deles falarem línguas outras que não a portuguesa e por serem lourinhos de olhos coloridos, eram todos recebidos com “receptivo turístico”montado pela própria prefeitura; eram paparicados por funcionários municipais competindo pelo sorriso mais todos dentes e pela reverência mais graciosa e com os comerciantes todos dedos delicados e prestativos ainda que essas pessoas bem pouco gastassem em seus negócios já que a bordo dispunham de farta alimentação e distração.

Essa aversão por turistas que não descem dos navios e que descem em sua maioria morenos e pretos é da balsa, existe a serviço de três preconceitos: o de virem dos cafundós do judas, o de não serem brancos e o de serem pobres. O rico esnobe estelionatário ladrão sem vergonha tarado que chega de carrão, de helicóptero ou de lancha é agradado numa subserviente adulação puxa saquista e por mais mal educado, grosseiro, estúpido que o seja, terá sempre a última palavra e sempre toda a razão.

Já o pobre preto da periferia do ABC é quase sempre destratado pelos serviçais desses ditos empresários praianos que horrorizam a paisagem com o beneplácito do poder público transformando as praias em botequins a céu aberto ou área vip de hotel/ pousada pretensamente chique e pelos moradores racistas, xenófobos e aporofóbicos que se acham no direito de serem eles também, tal como os patrões desses empregados destemperados, os donos da praia.

Num país com uma desigualdade social absurda, com um tratamento aviltante da sua população pobre como o vem a ser o brasil pátria amada brasil, Ilhabela poderia dar um exemplo virtuoso recebendo carinhosamente essas pessoas tão desrespeitadas, tão rotineiramente e injustamente humilhadas.

Mas não. Nem no Natal.
Que não é data do aniversário de papai Noel como as corporações que regem nossas vidas minúsculas se empenham em nos fazer crer.

“Amai-vos uns aos outros como eu vos amei”. O aniversário é de quem isso disse para séculos e séculos depois continuar a não ser verdadeiramente obedecido apesar da multiplicação exponencial de templos religiosos que usurpam o seu nome.

Amor. O sentido do amor. Esse foi o título escolhido para traduzir para o português o título do filme perfect sense dirigido por David Mackenzie, tendo como diretor de fotografia, Giles Nuttgens. Visto como antigo na voragem do circuito cinematográfico, é de 2011. E apesar dessa distância temporal que agora nos parece tão larga condenando ao esquecimento aquilo que não é recente, esse filme é seguramente atual por ter sido profético.
Mas nem por isso convém ser visto por quem não o viu e revisto por quem o assistiu antes.

Essa coluna que venera a fotografia não teria como não idolatrar essa película que é ela toda uma comemoração da fotografia magistralmente bem feita. Valeria a pena olhar cada fotograma atentamente, com a trilha sonora apagada no zero da sua escala, para admirar a luz poética, a palheta de cores delicada, o enquadramento perfeito, o foco no ponto exato; tudo convergindo para construir uma sucessão de fotos lindíssimas, inesquecíveis.
O tema é uma avassaladora doença que provoca a perda dos sentidos e se espalha veloz.

Principia com a tela completamente escura e uma narração de fundo: ” há a escuridão”. Seguida pela fala “há a luz” quando então surge a primeira cena filmando uma jovem mulher que é também protagonista da história caminhando em direção a nós numa paisagem acinzentada e friorenta da beira de um rio que corta a cidade. Ao chegar ao primeiro plano, à esquerda do quadro, ela para, se debruça sobre o parapeito da ponte, observando o rio abaixo.

E então, subitamente, dá-lhe uma grande cusparada. Assim, com esse ato de violência aparentemente despropositado, tudo começa: uma frenética colagem de fotos do cotidiano.

Esse ato inicial inesperado é um tapa na cara e depois de vermos o filme ele nos retorna à mente, como se fosse possível estabelecer uma relação de causalidade.

Airton Krenat, intelectual indígena brasileiro nos alerta para a nossa alienação da natureza.
Vivemos rigidamente absortos sorvendo sôfregos o tênue sopro de vida etérea das imagens brilhando no smartphone, tablet, notebook e tv. Faz tempo não sentimos mais o chão em que pisamos e nem mais o aroma do ar que respiramos.

Achamos que enxergamos, mas na verdade esse milhão de imagens que passam na íris dos olhos, não as vemos.
Pensamos que conversamos com gente em demasia através desses aparatos eletrônicos que se tornaram prolongamentos de nossos corpos fatigados por alimentação ruim e angústia onipresente, mas na realidade, não nos comunicamos porque ninguém nos escuta assim como não escutamos ninguém. Há muito perdemos o paladar de tanto nos embucharmos de comida industrializada que na propaganda televisa uma celebridade nos jura que nos surpreenderá.

Estamos cegos porque nalgum momento perdemos a empatia. Presididos por um sociopata que escolheu adorar a morte e não a vida e gargalha histérico diante da vitória do seu infatigável trabalho de destruição dos valores, das instituições, dos sonhos e amores que nos faziam humanos e solidários na ideia de sermos cordiais, cada vez mais tristonhos e sombrios ficaram os nossos dias a ponto de só nos restar o tato da ponta dos dedos para nos orientar a caminhar.

Diante do sofrimento acarretado pela pandemia em todos os recantos do país, achávamos que o que estávamos perdendo era a lucidez atropelada, agredida sem trégua pela horda de lunáticos bolsonaristas do facebook, twitter e whatsapp com sua pregação insana e messiânica contra a ciência, o bom senso, o respeito e o amor ao próximo que uns tão poucos combatem opondo informações fidedignas  como cruzes brandidas para afugentar demônios, afugentar vampiros.

É certo que a lucidez está em risco. Mas antes dela, perdemos os sentidos.

Os que morrem assassinados por essa peste perdem o ar. Morrem sufocados.

Nós que sobrevivemos nos afogamos no egoísmo e na incúria. Negacionistas agem parecido com crianças birrentas na sala de visitas. Parecido porque existe um diferencial nesse seu comportamento. Tem o desgraçado poder de provocar mortes, inclusive, a de parentes e amigos. Crianças birrentas no máximo causam irritação e incômodo.

E há os defensores da economia, pródigos em encabeçar carreatas ruidosas pelas cidades. Infelizmente, só fazem atrasar medidas com o real poder de abreviar a pandemia e aí sim, proverem uma saída segura da recessão.

Por não tomar as providências que estão sendo imediatamente adotadas pelos países responsáveis, o Brasil além de figurar como pária entre as nações,  – título admitido com orgulho pelo chanceler Ernesto Araújo, poderá ficar entre os últimos países a vacinar sua população inteira, muito embora ainda faça jus a continuar a ser um dos campeões da mortandade por coronavírus no mundo.

Nós que sobrevivemos ainda temos ar.

Precisamos respirar.

E ao respirarmos profundamente, ritmadamente, enchendo plenamente nossos pulmões sadios, quem sabe recuperemos nossos sentidos e a nossa sanidade.

Conscientes e empáticos, conseguiremos finalmente sofrer vivenciando o merecido luto a essas mais de duzentas mil vidas brasileiras que se extinguiram numa agonia excruciante e que nunca mais vão ver postagens criminosas nas redes sociais.

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