Enquanto o presidente da república demitia logo no meio da pandemia do coronavírus o seu ministro da saúde que vinha trabalhando com transparência e responsabilidade; enquanto o presidente da república discursava a altos brados entremeados por uma tosse inoportuna, em cima da caçamba de uma picape no meio de uma manifestação pedindo intervenção militar e promulgação de um novo AI 5 em frente ao quartel-general do exército em Brasília: “nós não vamos negociar nada”, em Ilhabela:
– o dono de um hotel de luxo para ricos e famosos e para os que admiram e invejam essa elite cafona, despedia seus funcionários poucos dias depois da publicação do decreto municipal 8.030 de 20 de março. Sequer pensou em manter esses empregos se valendo da retaguarda oferecida pelo governo federal. Além de jogar no olho da rua um exército de leais trabalhadores que mantinham em funcionamento seu estabelecimento auferindo lucros que robusteciam sua fortuna pessoal, lançou no lixo uma quantidade absurda de alimentos; sem pensar que poderiam ser distribuídos entre os despedidos. Estamos em Ilhabela.
– buzinaço de bolsonaristas fanáticos percorre ruas da cidade declarando seu apoio ao presidente e além de pleitear também intervenção militar e AI 5, cobrava imediato fim do isolamento social horizontal com a volta da atividade comercial. Nesse momento, os participantes da manifestação em Brasília vêm sendo estudados para serem identificados visando enquadrar criminalmente os que financiaram esse movimento anti democrático e a favor de um golpe militar. Inquérito foi aberto no Supremo Tribunal Federal. Em Ilhabela, os participantes dessa segunda carreata de desalmados sentem-se à vontade para agendar uma próxima porque estamos em Ilhabela.
– um atônito, embora bem-intencionado secretário municipal da saúde difunde nas redes sociais um vídeo logo depois da prefeita abrandar o rigor do decreto 8.030, relaxando o fechamento do comércio. Autorizando o funcionamento de manicures, cabeleireiras, barbeiros, lojas de material de construção, lojas de produtos variados para todos juntos com o comércio essencial voltarem à ativa em prol da economia insular. Nos momentos finais desse vídeo, o secretário diz sem jeito que “a prefeita liberou vários comércios mas a população deve continuar em casa”. É quase impossível ouvir essa sua fala porque justamente no momento dela uma obra de construção civil ao lado do secretário começa a fazer um barulho ensurdecedor. Então. Apesar desses trabalhadores todos de Ilhabela serem obrigados por si mesmos ou por seus empregadores a abandonarem a segurança de suas casas para voltarem aos seus empregos por força da vontade da prefeita, deveriam é permanecer em casa na visão do secretário. Mas estamos em Ilhabela.
– o decreto mencionado, o 8.030 tornou-se uma colcha de retalhos tantas foram as mudanças nele feitas do dia 20 de março para cá. O esforço de o ler no site da prefeitura engendra uma ação semelhante a de praticar um jogo dos sete erros. Com a diferença de que não serão só sete. Mas muito mais o número de canetadas que o transformaram num Frankenstein jurídico. Se essas canetadas podem ter em futuro bastante próximo o poder de construir uma tragédia, essa resposta não será dada nem pelo secretário assustadiço e muito menos pela prefeita. Porque estamos em Ilhabela.
– a página do facebook da secretaria do desenvolvimento econômico e do turismo de Ilhabela, apesar de ser de amplo conhecimento público que a pandemia do coronavírus se espalhava pelo mundo desde o início do ano, apenas no final da tarde do dia 13 de março noticiou a proibição da parada de navios de cruzeiro em Ilhabela. Nesse mesmo dia, o transatlântico Costa Fascinosa derramava milhares de passageiros e tripulantes na cidade. Hoje esse navio está preso no porto de Santos. Registrou dezenas de contaminações pelo coronavírus. Um médico italiano que estava embarcado morreu dessa doença. Nas redes sociais de moradores, o temor da pandemia era evidente mesmo porque muitos dos seus usuários tinham parentes morando na Itália, Espanha, França e foram advertidos com firmeza do perigo. Funcionários da secretaria, viajantes usuais às custas do erário para feiras de turismo mundo afora entretanto, no dia anterior, 12 de março postavam propaganda duma campanha milionária de publicidade “Ilhabela de segunda a quinta” inserida na TV. Estamos em Ilhabela.
– o recém-nomeado secretário de meio ambiente de Ilhabela, Eduardo Hipólito do Rêgo será um quadro técnico altamente qualificado num secretariado opaco. Vai brilhar. Mas como a avenida Manoel Hipólito do Rêgo fica em São Sebastião e não em Ilhabela, é provável que Eduardo tenha de atravessar para Ilhabela para trabalhar. Pode ser que para isso ele nem se valha de carro oficial. Como funcionário de alto escalão terá passe livre na balsa. O que sentirá Eduardo ao ver no continente, nas imediações do barraco da Dersa, moradores de Ilhabela desesperados para voltarem as suas casas e famílias sem o conseguir? Será que ele chegará a ouvir o relato aflito desses cidadãos de segunda classe? Se ouvir, seguramente ficará condoído diante dessa situação de enorme arbitrariedade. O fechamento da balsa, a proibição da travessia para a ilha por quem não for autorizado foi medida oportuna para tentar evitar a propagação da pandemia na ilha. Mas o critério para a concessão de passe é draconiano e só faz expor a desigualdade social que nos governa. Autoridades municipais, altos servidores públicos, amigos e afilhados do poder constituem uma “Nomenklatura” com trânsito livre. Os moradores pobres, sem QI, – “quem indica”, correm o risco de ao atravessarem para o continente, não conseguirem mais voltar; podendo até virar indigentes na cidade vizinha. Como uma administração municipal de bordão “carinho por nossa gente, orgulho da nossa terra” tem a coragem de tratar essa sua gente com tamanha crueldade? Estamos em Ilhabela.
– a quantidade de vídeos compartilhada nas redes sociais mostrando barcos, botes, lanchas atravessando pessoas com bagagem pessoal para Ilhabela é tão grande que poderia ser incorporada para robustecer a campanha publicitária “Ilhabela de segunda a quinta”, só que, desta feita, tomando a precaução de mudar seu título para “Ilhabela de domingo a domingo”. Porque embarcação flagrada nessa situação de atravessar turista tem sido vista todo dia. Como os hotéis e pousadas estão fechados, conclui-se que esses turistas ficam hospedados na casa de moradores escravos do airbnb e do booking. Ambas plataformas estão proibidas, mas isso não evitou o aporte dos turistas. Os ilhabelenses que os hospedam berram contra a paralisação da economia e o direito de ir e vir. Sem dúvida, fariam bela figura nas carreatas e movimentos em prol da abertura total do comércio, da decretação do novo AI 5 e da intervenção militar. Essa realidade põe a nu o fato de que o fechamento da balsa penaliza quem não o merece: justamente os moradores. Deixando livre para vir à ilha quem o quiser pagando a travessia em embarcação de recreio. Desde que a contaminação pelo coronavírus se tornou comunitária, quer dizer, ocorrendo dentro da ilha, essa restrição perdeu sua força. O que não significa que seja inapropriada. Fato é que desesperados moradores se descabelam em vão na entrada da balsa em São Sebastião enquanto turistas desembarcam nas praias de Ilhabela mal molhando seus pés. Estamos em Ilhabela.
– vulneráveis de Ilhabela: pobres; desempregados; despedidos por empresários poderosos e influentes metidos a porta voz do turismo na ilha; trabalhadores informais; ambulantes; enfim, uma legião de moradores em situação de precariedade financeira, cumprindo isolamento desde o fim de março, há quase um mês, estão desesperados. Há quem não tenha o que comer. Aguardam o socorro prometido pela prefeitura que não vem. Primeiro, anunciou-se uma verba de cinquenta milhões. Que foi cortada pela metade, sem explicação. A metade que restou será gasta num programa de “alimentation personal card”. De cadastramento bastante burocrático, impraticável para muitos munícipes analfabetos funcionais. O que não impediu que mais de dez mil se cadastrassem nele que vai beneficiar sete. De tanto demorar, a ajuda do governo federal saiu bem antes e de maneira descomplicada: dinheiro em conta para gastar onde e como quiser. O ” tabajara personal card” insular só pode ser usado em comércios da ilha. O valor liberado por mês precisa ser inteiramente gasto no mês sob pena de, não o sendo, a diferença retornar aos cofres municipais. Seus usuários ou usuárias não podem empregá-lo nem para comprar cigarro, nem para comprar bebida alcoólica. Pois são vistos todos como bêbados ou fumantes inveterados ou as duas coisas juntas; sendo por isso zelosamente cuidados pelas autoridades municipais que não permitirão que persistam nesses vícios tão horrendos. Porque bem o sabemos, sua chapa tem “carinho por nossa gente”. O nome do programa que não é em inglês, felizmente, e foi aprovado através de projeto legislativo no dia 30 de março é “Programa Emergencial Ilhabela Unida pelo Trabalhador”. A gente não encontra nesse mantra politiqueiro onde encaixar a empresa que vai criar e administrar os “Personal Cards of Alimentation” ao custo de mais de setecentos mil reais. Estamos em Ilhabela.
– os famintos de Ilhabela se aguentam à duras penas porque afortunadamente houve distribuição de cestas básicas. Mas ao invés de, dando prova cabal de haver “carinho por nossa gente”, veículos ociosos da frota municipal irem às ruas distribuindo essas cestas entre as famílias necessitadas, obrigou-se os coitados a saírem das suas moradias no cafundó onde Judas perdeu as botas para após se aboletarem em transporte público lotado, se aglomerarem às dezenas na porta do local de distribuição. Para caminharem depois de demorada e aflitiva espera carregando nas costas arcadas trouxas pesadas sob pena de terem problemas musculares de tal gravidade que demandem atendimento na rede hospitalar sob ameaça de sobrecarga. Porque estamos em Ilhabela.
– empresários e comerciantes falidos e outros quase lá em depressão ou neurótica ansiedade e insuportável agonia se unem aos vulneráveis sem eira nem beira e sem Tabajara Alimentation Personal Card clamando pela urgente volta ao trabalho. Pelo imediato término do fechamento parcial da atividade comercial na ilha. Precisam de dinheiro; precisam voltar a viver. Dinheiro que foi prometido pela prefeitura e pela câmara municipal para o dia de São Nunca. Nessa situação de gravíssima crise sanitária e econômica deflagrada pela pandemia do coronavírus, o estado liberal naufragou. No lugar dele em todo o planeta vem à tona o estado assistencialista. No Brasil isso também seria possível. Quem não crê nisso que assista o roda viva com a entrevista da economista Monica de Bolle. O presidente da república que jamais em toda a sua ordinária vida pública se importou com pobre e o posto Ipiranga que tem de quem é pobre pavor patológico, estão catalépticos e quem se articula efetivamente para auxiliar essa gente desamparada são os estados e municípios. A prefeitura municipal de Ilhabela ainda rica bem que poderia ter agido assertivamente levando realmente a sério o adjetivo “emergencial” que nomeia o seu programa de assistência. Mas estamos em Ilhabela.
– a boa notícia dada pelo secretário municipal de saúde no dia 21 de abril é que “neste momento não temos nenhum paciente internado com suspeita. Os exames de todos que estavam internados com suspeita deram negativos”. Isso pode de imediato estimular o relaxamento completo do isolamento social horizontal atualmente praticado na cidade. O isolamento com poucas brechas para o comércio que não seja essencial, será mantido no estado de São Paulo até o dia 10 de maio. O fato de não haver nenhum morador internado com suspeita de contaminação pelo coronavírus agora não garante que não haverá nos próximos dias. Pode-se fazer uma aposta temerária pagando para ver. Um relatório técnico publicado no dia 7 de abril por cientistas e pelo ministro da saúde demitido na Revista da Sociedade Brasileira de Medicina Tropical afirma que a pandemia terá um pico importante em abril e maio.
Estamos em Ilhabela, por enquanto a mais rica das cidades do Brasil. Que poderia ser uma das melhores do Brasil. Mas não. O pessoal sob o guarda chuva furado do “carinho por nossa gente, orgulho da nossa terra” não pode ser responsabilizado sozinho pela ruína social e econômica que rápida se avizinha. Os cofres da prefeitura ficaram superavitários nas administrações de longos anos dos prefeitos parentes, – políticos autoritários, clientelistas e populistas. Tanto esses dois quanto o recente prefeito caiçara cassado tiveram em suas mãos a chance e o poder de terem transformado essa cidade em um lugar realmente paradisíaco. Mas não. Torraram fortunas em obras inúteis e mal feitas, fortunas em desapropriações de imóveis hoje às moscas, fortunas em eventos medíocres, fortuna inchando o quadro do funcionalismo municipal; fortunas todas elas que poderiam ter sido usadas para revolucionar a cultura, a educação, a saúde, o urbanismo; para resolver definitivamente o grave problema de saneamento básico do município que o coloca como lanterna nesse quesito no estado de São Paulo; para criar uma robusta poupança e um plano de contingência para desastres possíveis, como o que agora acomete Ilhabela. Culpa no cartório têm as dezenas de vereadores que acompanharam esses governos e cujo dever era fiscalizá-los com rigor evitando conivência com malfeitos. Com tanto dinheiro em mãos, tão pouco fizeram. O que poderia explicar a transformação do sonho ufanista desses políticos todos se tornar agora pesadelo do qual não se acorda?
A triste verdade é que muito antes de ser atacada por essa pandemia do coronavírus, Ilhabela foi contaminada há tempos longínquos por um vírus ainda mais nocivo: o vírus da desumanidade. Que adoeceu gravemente seus políticos, suas autoridades, sua população.
P.S.: a coluna é atualizada no dia 23 de abril porque nesse dia, o comércio de Ilhabela amanheceu praticamente quase inteiramente aberto. A responsabilidade de buscar evitar a propagação do coronavírus passa agora a ser desses comerciantes todos que voltam à ativa. Diante da pressão dos vulneráveis e empregadores em desespero alucinatório e de alguns vereadores da cidade tomando a si como cruzada cívica o fim das medidas de isolamento social horizontal, a Prefeitura capitulou. Tivesse tomado com seriedade o sentido da palavra “emergencial” da sua política de amparo aos moradores aflitos e essa pressão teria sido menor. Mas não.
Pois hoje decidiu pagar para ver como foi escrito lá em cima. Uma aposta de alto risco, contrariando o antes mencionado artigo científico publicado na Revista da Sociedade Brasileira de Medicina Tropical e a determinação do governo do estado de São Paulo em manter a economia funcionando com restrições no estado inteiro até o dia 10 de maio, o que pode acarretar imediata ação do Ministério Público Estadual pela revogação desse decreto municipal de abertura comercial na ilha, o 8.064. Se essa atitude libertadora e redentora para muitos que hoje festivamente a comemoram pelas ruas de Ilhabela foi sensata e humanitária ou equivocada e desumana, isso não será conhecido num futuro intangível, mas em questão de dias.