É manchete do Nova Imprensa comunicado oficial da Prefeitura de São Sebastião anunciando medidas para a flexibilização do comércio visando à manutenção da economia da cidade.
O texto fala em evitar aglomeração, mas é evidente que essa flexibilização será um estímulo à saída dos moradores para a rua, abandonando a segurança das suas moradias.
Se eles vão se aglomerar ou não, é algo que não pode ser avaliado a priori.
As pessoas sensatas que neste momento respeitam o isolamento permanecendo dentro das suas casas têm dificuldade em imaginar que poderá haver quem vá ao manicure ou queira comprar roupas durante a pandemia conforme faz pensar esse comunicado oficial ao legalizar o funcionamento das lojas de roupas e salões de beleza entre outros comércios.
Mas poderá haver sim.
O mundo como o conhecíamos não existe mais. Todavia há gente em quantidade que por inércia continua aferrada à ideia de que ele continha ali fora, do outro lado da porta, apenas esperando que se ponha o pé na calçada.
Essa inércia pode ser motivada por uma infinidade de fatores, entre eles, a raiva.
Raiva é o que sentimos diante da constatação de que nossas vidas não serão mais as mesmas. Que poderemos empobrecer perdendo o conforto que hoje temos. Que talvez não possamos exercer os ofícios que tínhamos. Que o mundo em que nos acostumamos a viver será desfigurado e não saberemos mais caminhar pelos caminhos por onde caminhávamos seguros.
Porque pode ser que esses caminhos nem existam mais no futuro imprevisível em que cruzarmos a porta das nossas casas em direção à rua.
Então vem a vontade quase irresistível de logo cruzar a soleira. Como se ao fazermos isso garantíssemos a estabilidade, a permanência daquele mundo que nos era familiar.
Gente sensível, ao se deparar com a decisão de ficar ou de sair, sente-se colocada frente a uma escolha parecida com a de encontrar e pegar para si pelo tato uma pepita de ouro no interior dum buraco com uma jararaca dentro.
De certa maneira, é como se ao escolher pegar a pepita que é a liberdade arejada, iluminada, perfumada e gigantesca das ruas vazias ou vá lá, meio vazias porque sempre há quem nelas continue, se corresse o risco de levar uma picada da jararaca ou seja, colocar em iminente risco a integridade da sua saúde e a dos seus pais idosos ou dos outros familiares com quem se convive na intimidade de sua casa.
Pensamos que podemos ter a sorte de encontrar essa pepita ao primeiro toque. Esperamos que sim. Acreditamos que é possível.
O depoimento claro, bem fundamentado do biólogo Atila Iamarino no programa roda viva foi contundente ao deixar bastante evidente a sua determinação de proteger a saúde dos seus familiares. ” Mesmo que o comércio reabrisse hoje, eu não sinto vontade de voltar pro comércio.”
Governos como pessoas estão sendo levados a fazer escolhas dificílimas.
Antigamente, o seu acerto só seria mensurável num futuro distante.
Segundo Atila, no caso da pandemia, esse acerto será verificado em questão de dias, semanas, pouquíssimos meses.
A preocupação com a economia não pode se antepor à defesa da vida. Essa máxima consensual não interdita a existência dessa preocupação. Ela só não deve comprometer a defesa da vida.
É tênue o limite até onde se pode ir defendendo a bandeira da economia sem inviabilizar a defesa da vida.
São Sebastião ao relaxar o fechamento do seu comércio, permitindo que lojas variadas e serviços diversos voltem a funcionar com restrições, deve ter feito isso depois de um estudo apurado.
Esse medida, todavia, pode dar combustível ao movimento dos que clamam por uma volta a uma normalidade que não existe mais. E a sua pressão raivosa pode desencadear que aquele frágil limite entre a preocupação econômica e a proteção da vida seja ultrapassado, com potencial de configurar a situação temerária de pôr a mão no buraco da jararaca no desejo de pegar a pepita.