No canteiro da obra que não parou como tantas outras pela cidade, K. recebeu em seu celular sem whatsapp e facebook, num aparelho simples e dos mais baratos, a ligação do seu irmão de Ubatuba.
O coração disparou numa agonia de picar alma com a notícia de que o pai tivera um derrame e fora internado. Sem pensar duas vezes, largou o serviço de servente sem dar satisfação ao mestre de obras e correu ao encontro do pai enfermo.
Em Ubatuba pôde acompanhar a ida do pai à casa do irmão. Felizmente, foi medicado a tempo e apesar das sequelas do derrame terem lhe limitado os movimentos, existe a chance delas serem reversíveis.
Então K. empreendeu a viagem de volta para a sua casa; para os braços da sua mulher e a alegria dos seus filhos.
Ao chegar na balsa foi interpelado por um sujeito de cara amarrada.
– CPF?
– Cepê o quê?
– Número do seu CIC.
– Sique o quê?
E aí ficou sabendo que tinha de ter autorização para poder atravessar. Não adiantou nada explicar o caso do pai doente porque o guarda só fazia repetir que tinha porque tinha de entrar num tal de sítio para escrever num tal de cadastro o número desse tal de sique ou cepeefe falando o motivo de querer entrar na ilha.
Agora é outra a aflição de K.. É a de não poder voltar mais para a sua família que dele tanto precisa em Ilhabela.
Vai ficar preso numa cidade que tem uma morte confirmada pelo coronavírus e mais três mortes suspeitas. Que justamente no momento da subida da curva da pandemia, quando maior é a velocidade da contaminação, escolhe relaxar as medidas do isolamento social permitindo a abertura de comércios que farão manicures, cabeleireiras, ambulantes, vendedores saírem da segurança das suas casas para como soldados da economia do município, lutarem a glorificada pelas autoridades municipais batalha em prol da manutenção dessa economia que já foi pro brejo.
K. vai passar dias e noites feito indigente embaixo do teto de eternit do barraco da Dersa em São Sebastião aonde ficam todos esperando Godot diante das grades de cadeia que os encarceram.
Aguardando a hora em que enfim permitam que volte.
Essa historia curtinha é verdadeira. É quase certo que como ela outras mais estão acontecendo; aconteceram do lado de lá.
Bem que o articulista da foto em foco, na condição de jornalista e fotógrafo de jornalismo tentou, através do canal institucional da prefeitura de Ilhabela, obter o seu passe de travessia. Negado duas vezes apesar do exercício do jornalismo estar listado entre os essenciais, desses que não podem parar.
Se pudesse ir para debaixo desse teto raso de cimento acinzentado colheria mais histórias. Faria fotos de desespero que talvez colorissem com sua tinta triste jornais do dia seguinte.
Mas sem chance de retornar para editá-las e enviá-las à agência, essas histórias ficaram sem ter quem as contasse e as eternizassem em fotos que não brilham no instagram.
“A dor da gente não sai no jornal” cantava faz uma eternidade o Chico.
Pelo menos a história de K. ocupa este modesto espaço de tão poucos leitores. Sem foto, mas com uma pintura angustiada para ilustrá-la.
Nessa altura, a coluna chega aonde pretende chegar.
Como K., existem milhares de ilhabelenses. Sem instrução. Analfabetos funcionais. Alguns deles até têm smartphones descolados, mas têm dificuldade em manipulá-los. Sem meios de ter um range rover, se contentam em exibir o aparelho modernoso.
Mal sabem escrever. Isso não quer dizer que sejam burros. Não. No exercício de seus ofícios e no seu cotidiano mostram inteligência aguçada. Tivessem tido as oportunidades que tão poucos têm, desses que ficam escrevendo KKKKKKKKKKKKKKKKKKKKKKKKKKKKKKKKKKKKKKKKKKKKKKKKKKK e colando carinhas boquinhas mãozinhas risinhos chorinhos nas redes sociais, poderiam agora estar sentados na cabeceira da mesa de grandes empresas ou de câmaras, assembleias, tribunais, senado.
A prefeitura montou um site bacana mas essas pessoas não sabem falar a língua dele.
Muitas nem têm cic para digitar ou se têm, nem sabem qual é. Vivem de vender o almoço pra comprar o jantar.
Uma ligação da gerente Júlia da agência do Itaú de Ilhabela causou surpresa. Educadamente, ela mostrou preocupação com a situação do articulista que é correntista dessa agência bancária lhe dizendo que o banco gostaria de saber se seu cliente estava bem; se havia algo ao seu alcance que poderia fazer.
Fato que essa conta nem especial é. É uma conta básica sem movimento.
Pois então. Se essa gerente gasta seu tempo ligando para tantas pessoas de diferentes situações financeiras, queimando a orelha, gastando seu verbo numa atitude que muito embora possa estar a serviço de vender serviço, é uma atitude de cunho humanitário, por que cargas d’água a prefeitura não mobiliza seus funcionários que foram dispensados para ligarem para os telefones que a assistência social de Ilhabela tem cadastrado dos carentes?
Sim, porque carente tem telefone. Pode não saber mexer nos aplicativos que ele possui, mas sabe atender uma ligação quando a recebe.
Não. Tem de fazer esse site modernoso para embananar a cabeça desse povo pobre simplório.
Site que por sinal colapsou no primeiro dia.
E o Kenner Neiva em depoimento emocionado nos conta que compraram por quinhentos mil um equipamento que custa cento e cinquenta. Pra fazer funcionar esse trambolho que para muitos dos vulneráveis de Ilhabela é um bicho de sete cabeças ainda mais feio que o coronavírus.
Quer manter o site? É claro que tem de manter. É bom manter para quem sabe o acessar e felizmente, tem quem saiba. Mas por dever solidário mais do que cívico, é inescapável lembrar desses tantos humildes que não sabem e por isso muito sofrem.
A dor dessa gente não sai no jornal.
Nos insulares chapa branca o que sai para deleite dos seus donos é só propaganda municipal institucional de página inteira.
Essa gente, além de vulnerável, é invisível.