foto em foco: o 8 de janeiro

o 8 de janeiro

coluna de opinião da série foto em foco

Márcio Pannunzio, texto & fotos

Final de tarde na rua da praia em São Sebastião. O mormaço dum dia de desarranjo climático é o tormento que vive quem não tem acesso a ar climatizado e põe a cara pra incendiar ao ar livre. O calor pegajoso adere à pele e esgana o corpo numa agonia claustofóbica. A tarde caía sim, feito viaduto. Mas o bebâdo não trajava luto e muito menos lembrava Carlitos.
Espalhado numa cadeira dum desses bares que invadia a calçada exalando fritura e bafo etílico, o sujeito, embriagado, mordido pela curiosidade, interpelou os caminhantes que chegavam poucos e devagar; alguns com pandeiros, outros com bandeiras, uns com tambores dependurados no peito ensaiando um repique tímido.
-Quem são? Aonde vão?

Diante da resposta de que iriam se agrupar em frente à Casa da Cultura pra relembrarem  o trágico 8 de janeiro de 2023, perguntou se eram petistas. Não esperou resposta. Entre dentes, com desprezo e raiva falou para que todos a sua volta ouvissem: bando de vagabundos!

O pior dos governos depois da ditadura militar haveria de destruir a cidadania e as instituições da república demais e muito além. A lista de estrago é enorme e não há espaço para aqui elencá-la. Melhor a reviver pela pena da memória vivída do jornalista vencedor do Prêmio Esso, Weiller Diniz no artigo “Acabou, Porra”. Dividido em tópicos, o nome curto de cada um deles, juntando todos, compõe um poema concretista:
a morte/ a mentira/ maus militares/ a mamata/ a miséria/ o nazismo/ o golpismo/ o segredo

Essa sequência de curtas frases ritma um quadro de pavor, cuja pincelada final aconteceu nesse 8 de janeiro que entra pra história a desonrando.

Não se tratou unicamente de invadir, de depredar, de urinar e defecar nesses três palácios de Brasília; toda essa barbárie filmada com júblilo pelos próprios energúmenos golpistas.  Muito mais do que destruir patrimônio público histórico, pretendeu-se com ódio bestial destruir essas três instâncias de poder que norteiam, protegem e fortalecem a democracia.

Nos últimos anos, especialmente depois de 2018, brasileiros e brasileiras escolheram ser apátridas porque, como na tenebrosa época da ditadura militar, suas vidas corriam risco.
Voltaram, quase todos, assim como Betinho, o irmão do Henfil da célebre canção. Virou ele capa de revista, livro, filme e série da Globo.

Betinho não imaginaria que ruas das cidades brasileiras se tomariam por gente esfomeada e sem teto. Um padre solitário quer dar de comer aos que tem fome e os asseclas de Bolsonaro querem ciminalizá-lo com cólera facínora.

Como pôde essa gente demente fazer pouco caso da dor imensa de incontávéis Marias e Clarices? Como pôde essa gente endemoniada querer o retorno das trevas, a repetição dos anos de chumbo?

De tanto cortejarem desvairadamente, impunemente o abismo, o abriram aos pés do Brasil todo.

Octavio Paz, em ‘O Labirinto da Solidão’, diz que quando (Cristóvão) Colombo chegou, (os indígenas) não viram as caravelas… Elas estavam ali fundeadas, mas não havia cognição para poder representar cerebralmente uma imagem que era absolutamente incompatível com o quadro mental de uma cultura que não tinha elementos para visualizar… Por isso que os gregos diziam que ‘teoria’ significa ‘aquele que vê’, o ‘teores’, é ‘aquele que vê’… A gente só vê o que tem cognição pra ver…

Fala brilhante do professor doutor de Direito da Universidade de Brasília, José Geraldo de Souza Júnior, na CPI do MST.

Espanta perceber que não apenas a ignorância do passado inflinge um pernicioso  déficit cognitivo, a ponto de não se ver “caravelas”, – e convém as substituir no assunto objeto deste artigo pelas palavras “ditadura militar” -, mas mesmo quem as vê e tem a compreensão da sua enorme malignidade, após sofrer um processo de lavagem cerebral consentido pela sua desumanidade, já não se assusta e por isso, perdido é o nojo que deviam despertar.

Betinho morreu. Fosse vivo, que dissabor teria desse Brasil que sonha não com a sua volta, mas a volta do terror que o exilou.

Morreu também Aldir Blanc, o letrista inspirado do bebâdo e a equilibrista.

Morreu de Covid;  morreu por causa da negligência dum governo negacionista no cuidado da pandemia. Negligente também com a cultura a ponto de seu presidente vetar a lei Aldir Blanc.  Lei essa que beneficiaria  a cultura esfrangalhada desses anos de ultraje a ela e à ciência, após a derrubada do veto presidencial pelo Congresso.

Sem anistia para golpistas, punição para todos os militares e empresários envolvidos na intentona golpista, prisão de Bolsonaro, Forças Armadas submetidas ao poder civil, Marco Temporal, solidariedade ao Padre Júlio Lancellotti e Palestina livre.

Era essa a pauta do 8 de janeiro – Ato em Defesa da Democracia organizado pela Frente Progressista do Litoral Norte. A sua sobrevivência é a melhor garantia de que a esperança equilibrista não caia da corda bamba.

 

 

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