Sobre ser gestora cultural e fã de seriados médicos

Uma análise sobre a desvalorização do técnico cultural

Te convido a fazer uma análise crítica comigo. Vamos imaginar um cenário: Eu, no auge da minha fase adulta, construí nos últimos treze anos, para a área do setor cultural, uma formação educacional bem específica em gestão cultural. Estudei em universidades federais, fiz pós-graduação, cursos de capacitação e residências em instituições e fundações culturais. Uma escalada para hoje ser gestora cultural.

Ao buscar uma oportunidade no mercado de trabalho, encontrei uma vaga no Hospital Regional. A vaga é para chefe de cirurgia, como médico cirurgião, podendo ganhar até R$ 10 mil reais. Me inscrevi. Preparei uma apresentação com toda a informação que eu tinha ali na hora e fui para a reunião do conselho do hospital, com o corpo de funcionários e médicos.

Na apresentação deixei bem claro que nunca cursei medicina, nem estudos relacionados, mas tenho muita ideia boa para o centro cirúrgico, acho que podemos inovar na área de diagnóstico, afinal, assisti todas as temporadas de Grey’s Anatomy, House (o meu preferido), Chicago Med e a minha especialização, as séries brasileiras Sob Pressão e Unidade Básica. Expliquei para a equipe que, quando eu for realizar uma cirurgia, não é necessário ser técnica na área, apenas ter uma boa equipe, alguém ali que me fale onde cortar e o que costurar. Tudo é sobre ter convicção e acreditar que eu posso!

Nessa altura da leitura, você deve achar esse cenário um absurdo, não é? Irreal? Totalmente incapaz de acontecer… Mas aconteceu na apresentação de candidatos à presidência da Fundação Cultural da minha cidade e acontece também no restante do país.

Esse texto não é sobre hospitais. É uma analogia para evidenciar a incoerência e a desvalorização da área técnica na cultura, comparando-a com a medicina, onde a exigência de qualificação é indiscutível.

O ponto central da crítica é que, enquanto em profissões como medicina, engenharia ou direito, ninguém sequer cogitaria contratar um profissional sem formação técnica e experiência comprovada, na gestão cultural frequentemente se aceita (ou até se incentiva) a ocupação de cargos por pessoas sem conhecimento específico na área. É comum que nas proposituras para cargos em gerências de instituições culturais encontremos com os mais variados profissionais, com níveis de alta autoestima e muitas convicções.

A cultura no Brasil tem suas primeiras iniciativas de profissionalização, impulsionadas pelo movimento de descentralização cultural e pela criação do Ministério da Cultura (MinC) em 1985, sendo reconhecida como um setor que demanda gestão eficiente. Após a expansão de políticas de incentivo na década de 90, os anos 2000 em diante são marcados pelo surgimento de cursos específicos de graduação, pós-graduação e capacitação técnica. O campo se consolida com a criação de Planos Nacionais e Municipais de Cultura, que estruturam o setor.

Atualmente, a gestão cultural envolve conhecimentos de políticas públicas, legislação, financiamento, economia criativa, produção cultural e planejamento estratégico, sendo essencial para garantir a sustentabilidade, a democratização do acesso e a aplicação das iniciativas culturais.

A desvalorização da área técnica na cultura ocorre por fatores históricos, políticos e sociais que influenciam sua estrutura, onde a cultura é vista como um campo subjetivo, que criatividade muitas vezes substitui a formação técnica, levando à ideia de que qualquer pessoa pode gerir políticas culturais sem conhecimento específico.

Influência política nas secretarias de cultura também faz com que cargos sejam ocupados por indicações, sem critérios técnicos claros, além dos baixos investimentos e mudanças constantes de gestão, prejudicando a continuidade das políticas e o fortalecimento institucional.

A romantização de que todo gestor é gestor para tudo reforça a crença de que somente uma experiência cultural é suficiente para administrar políticas públicas, sem considerar a necessidade de conhecimentos em orçamento, legislação e financiamento cultural.

O setor cultural também sofre a relação entre cultura e educação. Sim. São áreas correlatas, importantes e complementares, mas o erro está em substituir a cultura pela educação ou tratá-la apenas como um braço do ensino formal. Isso ocorre porque a cultura é frequentemente vista como uma ferramenta pedagógica e não como um campo autônomo, com políticas, demandas e dinâmicas próprias.

Essa é a análise. Aqui já temos conteúdo para pensar e debater sobre o desconhecimento geral da importância da cultura como setor econômico, o que leva à sua subestimação e impede o reconhecimento da necessidade de uma gestão qualificada.

Trabalhamos para que o critério rigoroso usado para selecionar profissionais em outras áreas deva ser aplicado à cultura. Afinal, um hospital jamais aceitaria um fã de séries médicas como cirurgião, então por que há de se normalizar que um setor tão relevante quanto a cultura receba gestores sem experiência ou qualificação específica?

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