foto em foco: a ilha impermeável

a ilha impermeável

coluna de opinião da série foto em foco

Márcio Pannunzio, texto & fotos

Não é o jundu que, num suspiro de moribundo, se alastrou nuns fragmentos de praia urbana quem agora se derrama por ruas da orla, no Perequê e arredores. Antes de broquetes de concreto desenhando um delicado mosaico poroso, são rapidamente seladas por asfalto se tornando leito maternal para que boiem as caçambas que desciam pelo Reino nos vídeos aguaceiro catástrofe do youtube que exibiram ao mundo o lado B da ilha paraíso da fantasia institucional.

Nos verões de asfalto frita ovo, fritarão também a sola dos pés e o bafo de calor exalado do solo sufocado que fará tremular horizonte, vai implodir a cabeça no topo em excruciante enxaqueca.

Tanto dinheiro gasto nessa massa gosmenta vampira de vida e luz poderia com folga ser gasto, retrucariam alguns, na criação de tarifa de ônibus zero, facilitando e estimulando o uso de transporte público. Imaginando além, poderia ser empregado como parte da verba para um programa de renda básica que faria uma revolução social nessa ilha que quer ser impermeável, mas que ora corre o risco de se tornar permeável ao desastre climático que virá, veio, aí está.

Os antigos do lugar faz tempo o perderam para especulação imobiliária que se assenhorou de praias, semeou palácios mansões palacetes nelas e nas costeiras e erigiu fortalezas cancro câncer de gente toda igual numa monotonia esquizofrênica no seio da cidade enquanto a terra das pirambeiras e buracos era invadida e loteada para ser habitada por uma multidão de deserdados. Lembram os idosos, de ruas de terra batida sombreadas por abacateiros, mangueiras, jaqueiras, goiabeiras, araçás, pitangueiras, abricós, paineiras…

Poderíamos sonhar caminhar em ruas de cartão postal feito essa da foto de Atibaia; rua fresca pela sucessão de elegantes sibipirunas na calçada larga fronteira ao calçamento de paralelepípedos. Lá essas árvores de flores alegres amarelas antidepressivas, magistralmente cantadas por Deo Lopes, – que nos felicitou morando alguns anos entre nós -, são preservadas e a fiação elétrica não é obstáculo ao seu crescimento como nem o é a sua humana e hospitaleira vizinhança. Cá na ilha, a história, infelizmente, parece ser bem outra.

fiação elétrica & vizinhança em convivência  harmoniosa e pacífica; já aqui…

Calçadas inclusivas são mercadoria inexistente. Obras de urbanização que poderiam as ter criado com facilidade, simplesmente proibindo o estacionamento de carros ou transformando vias de mão dupla em mão única, não aconteceram; vejam-se os exemplos recentes da Casa da Dona Dedé e o da reurbanização da Cocaia. Dezessete quilômetros de largo calçamento para pedestres estavam previstos no projeto de melhoramento dumas poucas ruas: a da Cocaia e a Benedito Rodrigues dos Santos mais suas perpendiculares contáveis facilmente no Google Maps. Porém todavia entretanto o resto de calçada que lá sobrevivia foi retalhado para permitir melhor trânsito de veículos barulhentos poluidores atropeladores e pior trânsito dos caminhantes humanos. O ministério público foi alertado dessa trapalhada e também de que a obra usava materiais de baixa qualidade e que a promessa de enterramento da fiação elétrica e de telefonia estava ficando só nisso mesmo: promessa. A réplica da secretária de obras da ocasião convenceu o promotor também da ocasião de que no final tudo daria certo e a Cocaia viraria aquele bairro faz-de-conta autocad propagandeado pela firma portuguesa de urbanismo contratada. Desafortunadamente, isso não aconteceu e pode bem ser de nem a secretária e nem o promotor desejarem ir ali para olhar na real e ver e crer, ainda mais correndo o sério risco de serem atropelados, caso escolham fazer isso caminhando. E assim resultou perdida a oportunidade de efetivamente criar um bairro diferenciado onde fosse estimulada a mobilidade ativa.

promessas de céu no meio do inferno

Nesses tempos impermeáveis à sustentabilidade era sempre preferível rasgar caminho largo pra carro e tratorar a floresta pra soja ou gado. Deu no deu e quem circula nessas nossas ruas de pequena ou nenhuma calçada hoje se admira do malabarismo desses cabos eleitorais se equilibrando no meio fio, brandindo suas bandeiras que nos prometem o céu no inferno dessa malha urbana que asfixia e assassina a terra mãe numa corrida desastrada em nome dum progresso que, ao custo da infelicidade de tantos, tão poucos há de regalar.

Bom, deveria ter contado na época; não consegui. Embora soubesse que seria certeiro diante da sua longevidade, foi triste, foi indigesto, o falecimento este ano de Carlos Knapp, escritor, publicitário, diretor da Radiobras. Autor do Sumiço do Mundo, livro reportagem que tem como palco Ilhabela. Não essa de hoje, mas uma de quase duas décadas atrás e onde o calçamento das ruas não era toda essa escuridão do piche. Para ela, certo dia, o mundo sumiu e assim começou a epopeia da busca da autossuficiência. Merecia ter virado série da Globo, Netflix, Apple TV, HBO, Prime Video… Não virou; mas há tempo ainda.

Knapp teve vida venturosa, mas difícil; vida de exilado político. Nos seus últimos anos morou numa chácara próxima a Itu. Construiu uma casa luminosa e confortável, fez um pequeno lago, cultivou um jardim no sossego do campo. Acontece que duma hora pra outra, próxima a sua morada surgiu uma gigantesca fábrica que roubou sua quietude, espantou a passarinhada e apagou o brilho das estrelas. A literatura chega antes: Vitória, de Joseph Conrad, nos ensina que não há no mundo lugar protegido. Apesar desse dissabor imerecido, Knapp  dedicou-se ao que gostava de fazer: escrever e graças a sua imaginação prodigiosa, antes de partir nos presenteou com o hilário a viagem dos mal amados.

Como seria hoje se o mundo desaparecesse do lado de lá do canal? É provável que haveria gente pra caramba quebrando a picareta e marreta esse asfalto torra pé amolece cachola que impermeabilizou para o melhorar, o caminho da frota automotiva, então inteiramente parada, virando sucata, por falta de combustível que a fizesse funcionar.

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