Não olhe para cima!!!
coluna de opinião da série Foto em Foco
Márcio Pannunzio, texto & fotos
Carro versus casa, essa história não vai acabar nada bem; vai enfear e infelicitar Ilhabela.
O amor não tem pressa
Ele pode esperar em silêncio
Num fundo de armário
Na posta-restante
Milênios, milênios no ar
Na canção Futuros Amantes, Chico nos conta que o amor pode esperar. Mas é preciso esperar nalgum lugar; num fundo de armário, na posta-restante, numa casinha de frente pro mar.
Em Ilhabela, quem olhar ao redor, no Saco da Capela, vai encantar o olhar com uma singela moradia de paredes alvas com janelas dum azul de céu pacífico feito um brilhante perdido no meio de contas ordinárias de gargantilha. Essas janelas se abriram e vezes tantas pruma paisagem que não tinha como hoje todo aquele atulhamento de embarcação de rico esnobe cochilando na superfície d’água enquanto a polui de merda, urina, óleo diesel e gasolina.
Essa casa teve dona ilustre que era carinhosamente chamada de Dedé. Foi secretária da cultura que verdadeiramente a reverenciou, respeitando e valorizando seus criadores locais. Artistas da velha guarda ilhabelense se recordam com carinho e saudade dessa senhora de porte altivo e elegante, de fala segura e mansa que soube como tão poucos estudar e pôr em destaque a arte desse lugar de memória indigente.
Na semana de celebração da Congada não há como não nos lembrarmos dela. Priscila Siqueira esceveu que ela foi a caiçara que salvou a Congada de Ilhabela. A casa da dona Dedé continua viva, repleta do seu amor à espera dos escafandristas do futuro. Seus herdeiros a poderiam ter vendido para especuladores imobiliários e então não mais a veríamos; em seu lugar outra obra morfética conspurcaria a paisagem, agredindo nossa visão como essas aberrações arquitetônicas insulares cotidianamente fazem enquanto vão se construindo destruindo o passado escrevendo a história do sucateamento duma ilha que poderia ser verdadeiramente bela.
Na esquina do Perequê que atravessa pro alto mar, uma casinha tão singela quanto a que habitou dona Dedé agoniza emparedada por comércio de mobília pra endinheirado estiloso recém-mudado da capital. Moraram nela caiçaras de pouca renda, mas de muita cultura e boa educação. Havia na sua frente um pequeno jardim onde roseiras bem-cuidadas floresciam ornamentando e perfumando a calçada. Agora, só há lá cimento e concreto asfixiando o chão o preparando para a sua iminente submersão.
Pois a casa formosa da dona Dedé, juntamente com mais de uma dezena doutras na avenida Princesa Isabel, próximas à vila, sofreu processo de desapropriação porque entendeu a autoridade da ocasião que é de utilidade pública fazer isso para criar lugar de estacionar carro.
Não faz tanto tempo assim e a modesta casa atelier de Waldemar Belisário construída por ele pessoalmente com muito sacrifício virou estacionamento de supermercado e agora pretendem nos lembrar dele no presente aqueles horrorosos banners dependurados nas paredes externas do Centro Cultural da Vila ultrajando a beleza serena das suas pinturas.
No momento mesmo em que o Rio Grande do Sul se afoga arruinando a vida de milhares de brasileiros transformados num instante em refugiados climáticos, Ilhabela quer porque quer seguir insistir se emburrecer se envilecer obedecendo implementar um modelo de cidade fadado ao completo total irremediável desastre.
Não olhe para cima foi um filme tragédia comédia arrasa quarteirão que fez enorme sucesso e soube mostrar para os negacionistas climáticos que a vida terrena mudou demais e que é urgente evitarmos transformar nossa mãe Terra num inferno.
Desafortunadamente, parece ser essa a intenção desses decretos municipais de desapropriação: pavimentar não área de estacionamento, mas espaço farto pra calamidade. Impostos autoritariamente, sem consulta popular que escutasse voz da razão, vão colaborar para criar uma cidade prontinha pra receber as volumosas e gulosas águas do fim do mundo que ora arrasam o sul do Brasil.
A imprensa faz tempo nos alerta sobre essa desgraceira; reportagens sérias nos advertem que “Ilhabela é a cidade com o maior índice de imóveis em áreas sujeitas a desastres. Dos 19.015 domicílios espalhados pela cidade, 3.918 estão em áreas de risco alto ou médio (21%)”.
Quem há de discordar de que seria muito mais premente gastar esse dinheirão de desapropriação investindo em moradias seguras para esses moradores sujeitos a morrer em deslizamento de terra semelhante ao da Vila Sahy?
Não, não, não e não; ao invés disso o poder púbico prefere fazer estacionamento de carro ao custo da destruição do pouco patrimônio histórico que ainda sobrevive nessa cidade que pelo jeito, realmente não olha nem para frente, nem para o lado e muito menos para cima.
a casa caiçara que emparedada agoniza
e a casa da Dona Dedé, transpirando amor & vida.