Congada em Foco

Congada em foco

Coluna de opinião da série Foto em Foco

Márcio Pannunzio, texto & fotos

Sob a luz morna e áurea de maio, aconteceu a Congada de Ilhabela na festa de São Benedito. Na sexta-feira, dia 19, congueiros e populares se revezaram carregando pelas ruas da vila o mastro de São Benedito.

No dia seguinte houve o baile dos Congos pela manhã e à tarde. Por seu encanto cenográfico, atraiu como de costume, grande atenção. Numa cidade onde o pensamento da administração municipal dedilha sem pausa a ladainha monocórdia do turismo como suprassumo da atividade laboral insular, não falta desejo e vontade de transformar essa centenária manifestação da cultura popular caiçara numa encenação picaresca, dessas de fazer a delícia de parques gigantescos caça-níquel deslumbrados pela jequice norte-americana, a exemplo do Beto Carrero World. Sim, mundo em inglês, já expressando no próprio nome sua egolatria tão desmesurada a ponto de ter-se prestado a tomar partido e, desavergonhadamente, entrar em campanha, essa mesma que tragicamente redundou na destruição dos palácios do poder num 8 de janeiro que se inscreveu como data fúnebre, data do aviltamento da democracia brasileira.

Todavia, essa intenção de transfigurar uma celebração de raiz religiosa, devocional num teatro de rua de feição burlesca não encontra, felizmente, respaldo naqueles que pelejam para que ela marque sua presença ano após ano, passando de pai para filho numa sucessão de vidas com poder de nos contar muito do passado duma Ilhabela que o tempo e a urgência moderna de viver atabalhoadamente vão implacavelmente desfigurando.

Importante perceber que a Congada se inscreve, se subordina a um evento maior que é justamente o de festejar um santo amado e reverenciado pelos moradores dum vilarejo antigo, pobre demais, distante demais das benesses, dos confortos da vida metropolitana e dos abundantes e generosos royalties do petróleo do presente.

Um santo singular e essa sua singularidade foi destacada numa foto em foco:
“São Benedito é um santo negro, pobre e sua ocupação era a de cozinheiro. Por ser negro, pobre e trabalhador duma profissão vista pela maioria das pessoas como inferior, pois afinal, o santo não foi chef de restaurant ( em francês ) incensado pela Michelin, vive entre a brasileirada sempre excluída da água fresca e sombra sorvidas com tédio pela fidalguia nacional. Mais do que viver nesse inóspito meio, é o santo que a representa e lhe confere algum, ainda que muito pálido, pertencimento social.”

Márcia Merlo, escritora e antropóloga, no artigo “Congada de Ilhabela: o santo, o homem, a festa, o negro e o lugar” nos diz que

“Em outras palavras, ao realizarem a congada e reverenciarem o Benedito, recriam-se identidades, restaura-se um outro tempo, retorna-se a um outro lugar, demonstra-se a inserção de parte da população negra em uma Ilhabela que se quer branca. O negro sobreviveu, e à imagem de Benedito relaciona-se a de um homem negro caridoso, perseguido, milagroso, aceito pelos brancos, que resistiu aos maus-tratos e, mesmo morto, tornou-se eternizado; ou seja, também se pode pensar essa história como de uma resistência calada, penosa, duradoura, representada pela própria escravidão.”

A poderosa mensagem que a congada nos passa é a da valorização da solidariedade. Nesse sentido, seu ponto alto não é a dança, o embate entre os congueiros, mas sim, a ucharia. Nessa ocasião os diferentes se encontram e compartilham do alimento preparado pelos devotos de São Benedito. Em mesas que formam linhas contínuas no salão paroquial, mesas singelamente embelezadas por flores nos lembrando do milagre da transformação da cesta de víveres furtados da casa grande em cesta de flores, sentam-se lado a lado pessoas dos extratos sociais mais diversos numa convivência respeitosa, compartilhando com fartura alimento que faltou em demasia aos escravizados.

Essa lição humanitária, fosse ela seguida à risca, nos tornaria seres humanos melhores. Sem dúvida capazes de criar uma sociedade inclusiva, livre de preconceitos que estigmatizam e martirizam tantas pessoas.

banners institucionais espalhados pela orla vendem uma quimera que se desmancha em contato com a realidade 

Essa sociedade de sonho vivendo numa ilha que se sonha outra que não essa publicitária onipresente nesses banners espetados na avenida Princesa Isabel, logo ela que finalmente alforriou os cativos, bem que gostaria de resgatar e interpretar sua história hoje e pelos anos futuros num museu da imagem e do som, num museu da cultura caiçara, com força de estimular a construção duma cidade socialmente justa e ambientalmente sustentável, tendo motivo concreto para se orgulhar de si.

Tolice, devaneio; como poderia?

Se é nela que Bolsonaro escolhe passar à toa o Corpus Christi? À toa não, na verdade, produzindo vídeos propagandísticos da sua folga na “ilha da fantasia” que queria tê-lo como o eleito, sendo pois então efusivamente saudado por banhistas na praia, ávidos por selfies ao lado do seu mito, aos gritos de “volta, Bolsonaro”.
Esses vídeos que circulam velozes pela internet propagandeiam a imagem vexatória duma cidade onde parte expressiva da sua população cultua a extrema direita reacionária e golpista. Onde, São Benedito fosse vivo, não seria festejado e sim acorrentado no Pelourinho que sobrevive monumento na praça Coronel Julião.

O pesadelo dessa cidade que medra nessa lengalenga do turismo acima de tudo e de todos, fantasia nos iludir como se fôssemos nós mesmos os personagens desses banners duma vida de faz-de-conta.

 

P.S.: A exposição Márcio Pannunzio – Quatro Décadas acabou em 15 de abril e passado tão pequeno tempo, é seguro que pouca gente dela se recorde. Gratifica saber que o ponto alto desse projeto apoiado pelo Governo do Estado de São Paulo, Secretaria de Cultura e Economia Criativa, Programa de Ação Cultural se concretizou: o catálogo-livro homônimo. Ao pé da letra, uma publicação de peso escrita e diagramada por Enock Sacramento. Ele também, apesar da silueta esbelta, um profissional de peso e muito no cenário das artes visuais brasileiras. Enock ora se nomeia curador, mas é dum tempo em que o termo era desconhecido. Jurado de centenas de salões de arte pelo Brasil inteiro, crítico de arte, jornalista e diretor de redação da seção das cidades do ABC paulista do Estadão, fez e continua fazendo admirável carreira.
O livro de sua lavra, seu 43º, pereniza esse trabalho que envolveu muita gente de valor e essa instituição museológica modelo no Litoral Norte que é o Museu de Arte e Cultura de Caraguatatuba. Esse livro sobreviverá nos tempos incertos que nos aguardam porque jamais ficará obsoleto por problema de hardware ou de software.

Sua tiragem será doada para bibliotecas, centros culturais e escolas públicas no estado de São Paulo.

Uma diminuta fração dela, autografada pelo autor, será distribuída gratuitamente no seu evento de lançamento, aberto ao público, na Biblioteca Municipal Pública Afonso Schimdt, na rua Santa Cruz, 396, em Caraguatatuba, no dia 14 de junho, a partir das 17h.

Enock ressaltou em seu texto, o caráter visceralmente engajado, profundamente comprometido com a justiça social, da minha arte e a sua inapetência para prestar-se a decorar ambientes ostentatórios. O livro, porém, fará bela figura adornando estande ou mesa de centro.
Leitores e leitoras da foto em foco serão, é claro, bem-vindos, bem-vindas; apareçam e ganhem seu exemplar.

2 Replies to “Congada em Foco”

  1. bbw with huge knockers gets her pussy worked.weneedporn.online
    olalaporno.com shemale destroys her man.

    Belo registro!

  2. It’s perfect time to make some plans for the longer term and it is time to be happy. I’ve read this put up and if I could I want to recommend you some fascinating issues or suggestions. Maybe you could write next articles referring to this article. I desire to learn even more issues about it!

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *