No distante ano de 1968, o prefeito amante das artes Geraldo Junqueira, atendendo ao pedido de artistas locais duma Ilhabela provinciana, criou as condições materiais para a realização duma sequência de exposições coletivas de artes visuais que, em 1986, sob a gestão de Gilson Tangerino, passariam a ser nomeadas como Salão de Artes Plásticas Waldemar Belisário para homenagear o pintor falecido em 1983.
Belisário não era caiçara e não viveu a maior parte da sua vida na ilha. Se escondeu nela, amargurado, na baía de Castelhanos, a conselho de Martim Fontes, em 1930. Havia sido rechaçado por sua aristocrática família de criação onde exercia a posição serviçal de limpador de pincéis de Tarsila do Amaral e viu desmoronar seu sonho de conquistar o pensionato artístico paulista, uma bolsa de estudos, sonho maior dos artistas de poucas posses, que viabilizava viajar para Europa visitando seus museus e frequentando o atelier de pintores célebres, para voltar depois consagrado à pátria mãe gentil.
Para colocar em termos de comparação atuais, esse pensionato equivaleria hoje a um ProAc super turbinado, um programa de ação cultural do governo do estado de São Paulo com uma verba bem robusta porque, afinal, o ganhador recebia mil francos mensais, – valores sem correção da década de vinte -, mais passagem de ida e volta na primeira classe nos transatlânticos da moda e transporte de todas as obras criadas nos cinco anos residindo na Europa para o Brasil.
Belisário era já nessa época um pintor respeitado mas isso não bastava para garantir o pensionato. Era preciso também o tão brasileiro QI: quem indica. E quem indicaria seria ninguém menos que Júlio Prestes, hoje nome de escola, rua, avenida, rodoviária, etc etc etc a pedido de Patrícia Galvão, imortalizada com o apelido de Pagu; o acordo foi intermediado pelo casal Oswald de Andrade e Tarsila do Amaral. Pagu, amiga do casal, queria sair de casa e ser livre para politicar e fazer arte e para tanto, numa conjuntura social de rígida primazia do patriarcado, seu mais descomplicado passaporte para a liberdade seria casar com Belisário porque, casando, seus pais prontamente consentiriam que saísse. O casamento era de mentira; seria anulado em seguida.
O que não poderiam imaginar nem Belisário e muito menos Tarsila, com quem Belisário, apesar da enorme inferioridade da sua precária condição social e financeira, mantinha uma tênue familiaridade por ser agregado da família Amaral, é que logo em seguida Oswald e Pagu fugiriam para ficarem juntos.
Pois é. Parece dramalhão mexicano. Descoberta a trapaça, era natural que Tarsila e sua família ficassem furibundas com Belisário. Pagu cumpriu sua promessa e Júlio Prestes indicou o artista para o pensionato. O problema é que naquelas turbulentos anos trinta, com a economia e a política em polvorosa, escafedeu-se o pensionato e Belisário ficou, literalmente a ver navios até decidir embarcar num, bem modesto, para aportar em Ilhabela, uma terra esquecida e decadente com a quebra da cafeicultura; lugar sem autoridades públicas que, de tão depauperado, perdeu a condição de comarca, voltando ao julgo de São Sebastião no continente.
Logo se bandeou pra Castelhanos, onde comprou com suas parcas economias um pequeno terreno, para então gastar sua energia na lida da terra.
Mas como não há mal que nunca se acabe, nem bem que sempre dure, o pintor conheceu lá naquele cafundó uma professora, normalista recém-formada por quem se apaixonou e foi com grande paixão correspondido: Celina Cerqueira Leite Guimarães. Os dois se casaram em 1937 e viveram uma bela história de amor até a morte do pintor.
A acanhada Ilhabela que nessa ocasião nem Ilhabela era, mas sim Formosa por vontade getulista, era morada por demais simplória para um casal de espírito cosmopolita e por isso, em 1940, tomam juntos a decisão de se mudarem pra São Paulo.
Onde se enfronham na comunidade artística e onde Belisário passa a ensinar a desenhar em escolas para garantir o sustento que a pintura não oferecia. Além de lecionar, Belisário construiu para vender, bonecos de madeira articulados para servirem de modelo para desenho. Um deles está exposto numa sala indigente que se diz chamar museu Waldemar Belisário. Esse espaço acanhado que não exibe pintura alguma do artista, apenas alguns desenhos e esboços na companhia de fotos amareladas jamais estará à altura da importância da obra do pintor. Sem pinturas suas porque a prefeitura que tanto gasta em comprar terreno e casa particular pela cidade inteira pra virar repartição municipal não se sabe lá de quê, nunca se preocupou em criar uma pinacoteca que tivesse pintura do artista cujo nome batiza também escola pública. Durante algum tempo, na fachada do centro cultural que abriga o “museu”, penduravam pavorosos banners reproduzindo pinturas suas que seguramente causaram dano lastimável a sua memória.
Menos mau que apesar de tantos pesares exista essa salinha que teve melhor vida que o finado “cinema” inaugurado com pompa no mesmo centro cultural para logo depois ser interditado e fechado porque seu projeto e sua construção foram decrépitos como acontece de ser com uma boa quantidade de obras públicas de construção civil ilhabelenses, entre elas, exemplos, ou melhor, maus exemplos notórios, o centro de convenções e teatro municipal e a ponte estaiada; a primeira delas, ruína arquitetônica a céu aberto e a outra, uma sobrevivente que, para sobreviver, precisou ter todo seu piso e guarda corpo trocados depois de inutilmente serem mais remendados que Frankstein.
o Belisário de inox – foto Márcio Pannunzio
E falando de Frankstein, a estátua que adorna a entrada do Centro Cultural é ela uma versão obesa franksteiniana inoxidável do Belisário que aparece em fotografia carcomida, posando com seu cavalete de pintura pintando uma paisagem com uma arruinada fazenda Engenho d’Água como tema central, na década de trinta. Tomada pelo mato, suas paredes emboloradas e descascadas é um retrato em tudo diferente àquela que agora se inaugura, felizmente, depois de tantos anos fechada, para a visitação e deleite público.
Na metrópole paulistana, Belisário se enturmou com os pintores do grupo Santa Helena; frequentava a casa de Volpi. Durante a semana eram ele e Celina professores para prover a subsistência; nos finais de semana, viajavam pelos arredores para Belisário pintar paisagens, cenas de rua, festas populares.
A sua pintura foi sempre figurativa, mas isso não significou que fosse acadêmica; longe disso. Na construção do desenho e na elaboração da cor exercitou sua independência dos cânones em voga com um virtuosismo que somente o talento aliado ao trabalho diligente edificam. Nunca pretendeu retratar a realidade. Ainda que montasse seu cavalete na rua ou no campo, aquilo que via era apenas uma baliza a partir da qual construía sua pintura; ela, na sua integralidade, materializava um novo objeto no mundo, aberto a ser visto prazerosamente pelo observador livre de preconceitos.
Coincidiu que naqueles anos o mundo fosse tomado pela arte abstrata e os artistas figurativos passaram a ser tachados de passadistas.
“Acredito em meus sonhos e eles são figurativos” dizia Oswaldo Goeldi um ano antes de morrer, numa antológica frase que naufragou no maremoto abstracionista.
Nesse mesmo ano, Waldemar e Celina decidem voltar a morar em Ilhabela. Vendem sua casa na Cidade Ademar e compram um terreno no Perequê, na rua do Supermercado Frade. No ano seguinte, Belisário acamparia no local para construir ele mesmo sua moradia e seu atelier. Tanto um quanto outro eram construções simplórias, pequenas com telhado de cimento amianto; o atelier, na frente, tinha paredes de madeira.
cadê a casa caiçara que estava aqui? foto Márcio Pannunzio
Foram demolidos em 2005, tragados pela especulação imobiliária que desmantelou a morada e o lugar de trabalho do artista. A casa onde Marcelo Grassmann nasceu e viveu sua infância e parte da adolescência é conservada como atração turística em São Simão, mas Ilhabela que sem peias destruiu quase completamente toda o casario colonial que a adornava e aparecia no filme Caiçara e que recentemente também demoliu o singelo rancho caiçara de pau a pique e sapé que embelezava o anódino centro cultural da vila, nem um pouco se importou com a destruição completa do derradeiro lar do pintor e sua esposa, incentivando o esquecimento desses dois que tanto fizeram pela cidade. Belisário, a imortalizando em suas pinturas e Celina, entre tantas amorosas ações, compondo o hino da cidade. O pintor a custo virou nome de escola e salão de arte, mas Celina… Cantora lírica que se apresentou com Villa Lobos, inspirada professora de música, foi o nome bem escolhido para intitular o coral municipal de Ilhabela, de vida breve. Mas por não ser caiçara, não teve em vida a satisfação de ser agraciada com o pomposo galardão de Título de Gratidão Caiçara com o qual alguns daqueles que se refestelam na egrégia câmara municipal e nas repartições públicas insulares, hoje se lisonjeiam festivamente.
Como artista esquecido pela historiografia oficial, Belisário foi lembrado na ocasião da comemoração dos cinquenta anos da semana de arte moderna de São Paulo, integrando o grupo dos pintores de descendência italiana que pintavam nas horas vagas e ficaram à margem do movimento modernista, sendo por isso injustamente enquadrados como antiquados.
Pietro Maria Bardi, diretor do Museu de Arte de São Paulo, admirador da obra de Waldemar Belisário, faria nesse aclamado museu uma individual do artista com quarenta pinturas. Essa exposição é considerada por muitos como um ato de consagração do pintor, então octagenário.
Tarsila Amaral faleceria em 1973, dois anos antes da individual de Belisário. Em 2019 o MASP exporia cento e vinte obras suas numa mostra que teve público recorde onde os visitantes se digladiavam para fazer a mais faceira selfie usando suas pinturas como pano de fundo. Elas valem milhões; as de Belisário, uma fração muitíssimo pequena disso correndo o risco, se colocadas em leilão, de passarem despercebidas.
As exposições coletivas da década de setenta na ilha iniciadas em 1968, reuniram um time brilhante de artistas além de Belisário: Fernando Odriozola, Yarê Aranha, Rafalel Desimore, Maciej Babinski, Jannik Pagh, Durval Palermo, Henrique Smith, Giba Ilhabela, Gilda Pinna, Lavínia das Ilhas, Pituca.
Odriozola endoideceu uma outrora bucólica Vila ao ser premiado como melhor desenhista nacional na oitava Bienal Internacional de São Paulo, em 1965. Naquela ocasião, a notícia foi comemorada com entusiasmo pelos artistas locais que fizeram e se inscreveram na história e comemorada também, pelos demais moradores, felizes por terem vivendo entre eles, alguém tão importante por ter sido em Bienal distinguido.
Na década de noventa muitos artistas seguiram encantando em exposições coletivas, parte delas feita no Hotel Itapemar. Novos surgiram de lá pra cá: Carlos Pacheco, Hugo, Lícia Ferreira, Ursula Möllhoff, Zé Paulo, Gilmara Pinna, Crau da Ilha, Ângelo Cavalheiro, Renato Pascoal, Marcos Emendabili, Leon Ribeiro, Antônio Tom, Vicente Bernabeu, Fernando Feierabend …
Na passagem para o terceiro milênio seguiu o Salão Waldemar Belisário acontecendo ano após ano com muitas artistas se destacando: Rosangela Capella, Ana Canale, Sdondi, Laís Helena, Sadala, Evelyn Siqueira…
Hoje, Ilhabela com quarenta mil almas, cresceu, a bem da verdade, inchou. Palacetes se dependuram pelas costeiras interditando a passagem ao mar e o que restou de caiçarada arma barraco em vão porque nos tempos de agora essa grana toda que ora aporta com a boçalidade a tiracolo sempre berra mais forte sentenciando a palavra final. Nesses ambientes espaçosos à beira d’água, a propaganda governista se esmera em vender Ilhabela Home Office filmando madame e coroa ricaço de shorts, ele e ela tão despidos e folgazões como se por aqui não habitassem também facinorosos borrachudos e pernilongos muito mais sedentos de sangue do que o anjo vampiresco da missa da meia noite. Doutro lado, casebres e barracos se esparramam pelas encostas, pelos grotões e pelos buracos; seus moradores invisíveis à publicidade institucional se prestando como mão de obra servil desses tão desejados festejados bem-vindos novos ricos residentes; esses sim, duma visibilidade fuzilante correndo velozes com seus suvs reluzentes nas ruas recém-calçadas atropelando os pés de chinelo que lhes servem, órfãos eles todos de calçadas decentes.
A Ilhabela que nos governa quer porque quer ser outra que não ela mesma e nos publieditoriais de jornalões que se apequenam no papelão de jornalecos sonha ela ser a Nova Zelândia se esquecendo da notícia de repercussão nacional que a revelou inteiramente pelada sem maquilagem que ocultasse a feiúra da sua ignorância; notícia essa, tratada com a usual gabolice jocosa pelos repórteres e colunistas, da aquisição e da distribuição pela rede de saúde municipal insulana do kit covid, isso em março de 2021, quase um ano portanto dele ter sido mundialmente desmascarado como ineficaz e nocivo por médicos e cientistas sérios, bem como, por renomadas instituições científicas e pela Organização Mundial da Saúde. Nova Zelândia? Será que feito lá, cá será em breve exigido daqueles que quiserem aqui entrar, a caderneta de vacinação confirmando que seu portador foi integralmente vacinado contra a covid? A partir de primeiro de novembro só se entra na Nova Zelândia mostrando esse documento. Caso contrário, ainda que portentoso seja o saldo bancário do visitante, é porta batida na cara; entrada negada, voltar pra trás. Mas não. Seguramente a propaganda oficial ilhabelense não abraçará essa bandeira a deixando de lado, desmerecida, coitadinha, como o faz com as vermelhas da CETESB que tremulam sanguíneas nas praias do arquipélago.
Cena de covarde pancadaria contra pescador idoso que poderia até figurar como um desses home office workers que tanto os gestores do turismo ilhéu desejam viralizou nas redes sociais e foi notícia na televisão com o habitual alarde desses comentaristas mundo cão. Bizarro é que essa agressão covarde tenha sido desferida por profissionais do turismo, conforme foi noticiado; todos jovens, todos trogloditas. Esse vídeo de embrulhar o estômago com certeza não será capitalizado pelos çábios fazedores de reclames numa nova campanha “é tempo de apanhar em Ilhabela”.
As autoridades da cultura insular se ufanaram porque o 43º Salão de Artes Plásticas Waldemar Belisário recebeu muita inscrição de artista de fora, superando duas centenas. Pois na época do fastígio dos salões esse número era café muito, muito pequeno. O Salão Nacional de Artes Plásticas promovido pela Fundação Nacional de Arte sob demolição bolsonarista transformada em naufrágio nacional de arte pátria e o Salão Paulista de Arte Contemporânea, para ficarmos apenas em dois vistosos de numerosos exemplos, recebiam milhares de inscrições.
Fastígio? Sim, pois os salões vivem seu ocaso e foram um a um, se apagando, se extinguindo; o Waldemar Belisário é um dos poucos sobreviventes.
Numa época de difícil acesso para expor, pela ausência de lugares dedicados a isso, os salões foram o cobiçado baile de debutantes para incontáveis artistas. Além de oferecer visibilidade, ofereciam medalhas brilhosas feito atestado de qualidade do IMETRO que os artistas de antanho orgulhosamente exibiam no afã de valorizarem monetariamente suas obras e realizarem o objetivo maior e inalcançável para a maioria dos pobres arteiros mortais, qual seja, o de viverem de arte.
Waldemar Belisário, a despeito de seu incontestável talento e dos seus esforços infatigáveis, não conseguiu pagar suas contas à custa da sua pintura.
Porém, depois que a arte se instituiu feito oportuno negócio inclusive de lavanderia industrial de lavagem de dinheiro sujo e decoração de ambientes dos novos ricos, pulularam comércios se denominando galerias de arte em tudo quanto é rincão verde amarelo para a contento atender o despejo linha de montagem de artistas que as faculdades disso, de artes que se pretendem ensinar, se nomeavam e afoitamente descarregavam e continuam a descarregar. E esses milhares de artistas no pujante brilhantismo da sua juventude se batem uns contra os outros nas redes insociáveis logrando êxito fácil em mostrarem a esse mundo boquirroto suas maquinações descoladas e sempre escrupulosamente modernosas.
Por outro lado, foram fortalecidos programas governamentais em todos os níveis de estímulo à criação artística, garantindo além de espaço expositivo, condições financeiras que viabilizam o trabalho envolvido; sim, porque fazer arte é trabalho e dá trabalho.
Cidades e estados criaram pelo país inteiro seus programas de incentivo e uma característica peculiar de todos é que chancelam a reserva de mercado. Dessa maneira, nas cidades, concorrem somente os que moram nela e nos estados, os que nele residem e tanto num caso como noutro, o tempo mínimo de residência é de dois anos. Havia programa federal; bom isso antes da consagração da música clássica wagneriana, do canto gregoriano e do sertanejo barraco invade tribunal, do realismo negacionista, do messianismo caça-níquel e da cultura da incultura em patamar nacional. Afora os programas governamentais, proliferaram os privados, sob a batuta de empresas que descobriram neles uma propaganda empresarial de bom-mocismo de amplo alcance e baixo custo.
Ilhabela, na época da eclosão da pandemia, durante a finada gestão Tenório/Gracinha sentiu o gostinho ligeiro dessa progressista política cultural com a semana de arte virtual e o edital de fomento que, infelizmente, não tiveram mais sequência.
Por causa dessa mudança de cenário, os salões perderam seu poder de atração e, consequentemente, seu prestígio.
O Salão Waldemar Belisário persevera por inércia e os gestores da cultura oficiosa municipal se esmeram em apresentá-lo como uma sua pérola, literalmente montando fanfarra na sua abertura, com direito a show jeca brega gringo de entrega de checão gigante impresso para quem sabe ocultar o embaraço dos seus ganhadores por detrás dele no palco montado para espetáculo televiso no facebook da prefeitura. Cuja transmissão ao vivo não durou neste último salão nem cinco minutos poupando as autoridades do constrangimento de ficarem chamando em vão os medalhados no tablado; os esperando, inutilmente, com cara de tacho.
Quase todos não subiram pra posar com o checão e o troféu, cujo conjunto custou uma verba que teria melhor finalidade se fosse destinado aos prêmios aquisição; esses, com poder de estimular a formação de uma pinacoteca municipal. Aconteceu dos premiados se ausentarem não porque eles soubessem antecipadamente que iriam pagar mico participando dum ato publicitário padrão sinta natureza e se esconderam. Não foram porque simplesmente não ficaram sabendo que haviam sido premiados. Não souberam porque o regulamento do salão determinou que os premiados só seriam revelados no ato da abertura. O que é, evidentemente, uma regra absurda como acontece ser boa parte do regulamento; absolutamente sem pé nem cabeça.
Limitar a exibição a uma obra por artista em cada técnica é uma atitude estúpida. Os salões memoráveis especificavam a obrigação de avaliarem no mínimo dez obras por artista inscrito, exibindo, caso fossem selecionados, ao menos cinco delas. Isso porque uma única obra não possibilita uma avaliação acertada; é preciso um número maior para se ter uma visão ampla. Estancar as técnicas artísticas num momento em que se mesclam e se misturam criando novas e impactantes poéticas, é de um anacronismo cruel. E mais cruel ainda é tentar hierarquizar prêmios em categorias medalháveis de ouro, prata e bronze como se a exposição fosse um certame esportivo ou pior, uma feira agropecuária. Artista que se preza pode até gostar do Muttley, o cão do Dick Vigarista doido por medalha; mas não pretende jamais posar de militar engalanado.
Os salões que respeitavam os participantes inscritos, faziam uma seleção preliminar por foto ou vídeo, o que poupava os concorrentes do custo, por vezes, elevado, do envio de trabalhos que corriam o risco de serem recusados. Ilhabela tratou com ruindade muito artista que veio de longe carregando sua obra, gastando dinheiro que nem tinha pra ser eliminado num processo de julgamento sem transparência pois a composição do júri de seleção não foi divulgada e tampouco a ata do processo dessa seleção e premiação, se é que foi lavrada como sempre era a praxe dos salões sérios.
Quem viu a exposição montada em apenas duas salas do centro cultural da vila, tendo Ilhabela tantos espaços expositivos espalhados capazes de exibirem juntos centenas de obras, de imediato percebeu que o evento que teve quase trezentos inscritos, resultou numa exposição minúscula.
Foi uma atitude segregatória isolar os premiados na melhor das salas, sendo mesmo ela, limitada, para poder sediar uma exibição que tivesse uma expografia profissional.
o salão oficial – fotos Márcio Pannunzio
Pretendia talvez posar de MASP usando ali suportes miniaturizados daqueles lá empregados: grandes lâminas de vidro blindex ancorados em blocos de concreto. Isso cai bem num espaço generoso, amplo, bem ventilado e arejado como acontece no MASP; não numa sala estreita onde nem tiveram o cuidado de eliminar janelas sem qualquer função, escolhendo simplesmente ocultá-las com toscas cortinas. As peças escultóricas foram exibidas em cantos ou encostadas em paredes; limitando a chance do expectador rodeá-las, numa óbvia eleição de projeto expositivo burro. Com uma quantidade expressiva de artistas talentosos morando e criando em Ilhabela, com obras vigorosas e carreira consolidada, causa estranhamento que tão poucos deles tenham participado desse 43º salão. Se foram cortados, houve falta de sensibilidade e de conhecimento da riqueza artística da ilha por parte do jurado que, então, julgou mal; se não se inscreveram, é ainda pior porque isso sinaliza que nem deram bola pro salão que foi uma árdua e muito importante conquista dos artistas ilhabelenses da década de sessenta, unidos, a despeito das suas diferenças e idiossincrasias, pela melhoria da cultura insular.
o salon des refusés – fotos Márcio Pannunzio
Uma louvável iniciativa foi a de contornar a estultice de se expor um número tão ridículo por ser demasiadamente diminuto de obras, fazendo-se uma exposição de lambuja, a “o que os olhos não viram”. O que, seguramente muito mal viram ou nem viram mesmo, os olhos míopes e astigmáticos dos jurados contratados. Pena ela nascer estigmatizada como uma mostra de restos, de obras desclassificadas, rejeitadas. Quem tiver visto a Waldemar oficial e olhar com sadios olhos agora essa inteiramente feita a partir da exibição daquelas obras recusadas que entulhavam amortalhadas uma enorme sala depósito do centro cultural, há de constatar que muitas delas deveriam, além de terem figurado no salão oficial, terem sido premiadas fosse o jurado melhor capacitado. O fato incontestável é que foram por ele eliminadas no processo de seleção, sendo pois impinchadas como menores. A oportunidade de serem nesse momento apresentadas, estimula o salutar debate acerca do acerto ou, mais acertadamente, do desacerto do juízo que as eliminou. Seja como for, essa segunda exposição, por sinal bem melhor montada que a anterior e ocupando as salas por ela antes ocupadas, além de permitir aos moradores e turistas momentos de consistente fruição estética, aliviará um pouco a barra suja dos organizadores do salão cujos olhos viram o malfeito que com ele fizeram apesar de o terem inaugurado com tanta fanfarronice.
A alegação de que o regulamento é impeditivo para a permitir a melhoria do salão é uma desculpa esfarrapada. Regulamentos se amoldam aos tempos e os regulamentos dos salões antológicos passaram por alterações que os tornaram cada vez melhores. É função da comissão organizadora promover essas mudanças que, se bem elaboradas, terão o poder de oxigenar e dar roupagem contemporânea a esse evento cultural ilhabelense quase cinquentenário numa cidade que pouco fez e faz para valorizar a sua cultura.