Um vídeo de poucos minutos gravado na noite desta segunda-feira, dia 16 de março, viralizou na internet. Exibe a performance de um jovem negro perfilado na frente dos idólatras de Jair Bolsonaro concentrados no cercadinho montado especialmente para confinar essa torcida na saída do Palácio do Planalto. “Você está entendendo. Estou falando brasileiro. Você não é presidente mais. Você precisa desistir”, foram parte da sua rápida fala carregada de sotaque. Haitiano, simplório no vestir e no domínio do idioma, ele teve a coragem de dizer o que tanta gente guardava no fundo do peito causando enorme aflição, principalmente depois de ver o comportamento de Bolsonaro neste final de semana. Desobedecendo a recomendação de seus médicos de manter isolamento, saiu a campo cumprimentando efusivamente participantes de uma manifestação antidemocrática abertamente estimulada por ele nas redes sociais.
Diante da pandemia de coronavírus portou-se, no entendimento de muitos, a exemplo da deputada estadual Janaína Pascoal, de maneira que poderia ser criminalizada como homicídio doloso.
O presidente, antes de se afastar do público e entrar no carro oficial, encarou o rapaz e disse: “Volta para o seu país, cara. Volta para esse antro…”
Esse desaforo expressa uma xenofobia que é, lamentavelmente, similar a de muitos daqueles ilhabelenses que clamaram no facebook pelo fechamento da balsa, tornando Ilhabela incomunicável, com trânsito livre somente para moradores e para o transporte de mercadorias.
A grande pressão popular teve o efeito de obter a assinatura da prefeita Gracinha no decreto 8029 que interditou a travessia para não moradores a partir das 23h59min de 19 de março, durante dez dias. A validade dessa medida extremada, ainda que ela possa se mostrar benéfica, pode ser objeto de questionamento.
Validade efetiva, amplamente divulgada pela Organização Mundial da Saúde, é a do distanciamento social praticado por toda a população evitando exposição ao vírus. Essa medida, caso se mostre ineficaz, pode evoluir para a de quarentena, como ocorre na Europa.
O distanciamento social, infelizmente, em Ilhabela não tem sido respeitado, bastando ver as aglomerações de turistas e moradores nas praias, nos comércios, nas ruas, nos templos religiosos, no transporte público. E não é inconveniente lembrar como foi dito logo na abertura da foto em foco passada, que até bem pouco tempo, turistas estrangeiros com potencial de transmitir a doença, se esbaldavam pela ilha inteira.
Hoje, quarta-feira, dia 18 de março, em pronunciamento ao vivo em rede de televisão, Bolsonaro, ladeado pelo seu ministério, quem sabe talvez abalado pela manifestação do corajoso haitiano, felizmente reconheceu a gravidade da situação e a hora agora é a de somar forças evitando o “achismo”, a polêmica estéril, a desinteligência.
Portanto, é inoportuno atirar pedras contra a prefeitura que, à primeira vista, tem se pautado por uma atuação criteriosa, obedecendo as normas divulgadas, ao montar um comitê técnico, multidisciplinar, onde tem prioridade a voz dos profissionais da saúde.
Não obstante, diante daquela mencionada visão das praias cheias de banhistas em grande proximidade uns dos outros e dos bares e restaurantes igualmente repletos de pessoas felizes como se desfrutassem da sua folga; dos templos religiosos celebrando seus cultos em espaços abarrotados de fiéis; dos ônibus da Fenix transitando lotados, com passageiros em pé e demasiadamente próximos; de comércios funcionando com pessoas muito aglomeradas tanto trabalhando quanto sendo atendidas; todas essas situações pintam o retrato alarmante de vidas colocadas em risco ao viverem como se não estivessem presenciando a infestação de um vírus que vem matando gente em escala planetária.
É imperativo que esse comitê de técnico se transforme em comitê de crise como aconteceu nos grandes centros urbanos. Porque se trata verdadeiramente de uma gigantesca crise a que ora se apossa de Ilhabela e ter paralisado a balsa terá sua serventia comprometida se os seus moradores não se conscientizarem da sua seriedade.
Deixar os destrambelhados, os desajuizados do lado de lá não vai evitar que a pandemia se espalhe na ilha se tantos outros iguais continuarem festejando a sua demência do lado de cá.
E, apesar da boa vontade do Secretário Municipal da Saúde, é evidente que a estrutura existente para acolher e tratar dos doentes é insuficiente. Só existem quatro leitos de UTI para tratar os casos mais graves, que demandam extrema atenção e tratamento demorado.
Desafortunadamente, há na ilha muito comerciante revoltado com a fuga dos turistas e a consequente queda da sua renda. Então abraçam o discurso alarmista de que o comércio não pode quebrar senão a ilha afunda. Não querem perceber que ela já afundou e que o momento de fazer a contabilidade das perdas que serão além de qualquer conta não é agora. Além deles, há muito jovem que se acha imune ao vírus se esquecendo que pode transmiti-lo aos seus pais, tios, avós. Que, ao o contraírem e desenvolverem a doença, podem morrer. No juízo de gente como Janaína Pascoal, esses jovens insensatos são assassinos, são parricidas.
Quem tem ainda estomago e coração forte para acompanhar o noticiário na televisão já sabe de cor e salteado que a economia vai mesmo quase parar; sabe que a recessão vai contaminar o país inteiro como o fez com tantos países; eles caindo uns após os outros feito peças de dominó.
Muitas pessoas que têm dinheiro correram aos mercados entupindo suas despensas na espera de uma guerra. Essas pessoas vão dispensar seus empregados domésticos assim como empresários vêm despedindo seus funcionários no país todo.
Esses milhões de desempregados terão dificuldade extrema de abastecer suas casas ao não encontrarem meios de sustento.
Essa situação é particularmente crítica em Ilhabela onde parte expressiva da população, a despeito de viver na mais rica das cidades do Brasil, tem renda arrochada e precarizada por empregos temporários vinculados à cultura, ao comércio, ao turismo, à construção civil e à manutenção de moradias de veranistas e de moradores com melhor condição financeira.
Então, dentro desse comitê montado pela prefeitura é ação ditada pela solidariedade, pela humanidade que ainda sobrevive em nós que vivemos numa nação cindida e polarizada, que protagonismo tão forte quanto o dos profissionais da saúde, tenham os da Secretaria Municipal de Desenvolvimento e Inclusão Social capitaneada pela professora e ex-prefeita Nilce Signorini.
Esse contingente enorme de moradores não pode ficar desamparado neste momento crucial em que as palavras de um humilde pipoqueiro no Jornal Nacional proclamaram para o constrangimento do país inteiro o seu desabafo: “se eu não morrer do coronavírus, morro é de fome”.
Sob a pena de que no futuro muitos outros ajam como agiu o jovem haitiano confrontando o presidente da república, mas desta feita interpelando energicamente os vereadores, a prefeita, os secretários e secretárias do município, é urgente que todos assumam e exerçam os seus deveres. E para que haja eficiência, nem seria o caso de decretar emergência, calamidade, estado de alerta na cidade. Que o trabalho dessas autoridades busque se pautar pela ampla transparência e séria responsabilidade no trato do dinheiro público, evitando movimentar a receita municipal desnecessariamente atropelando diretrizes que sujeitam sua gestão à fiscalização.
O farto dinheiro da arrecadação bilionária de Ilhabela ao invés de bancar tanto uso condenado pelo Tribunal de Contas deve ter a meritória força de salvaguardar vidas fornecendo condições mínimas de sobrevivência para os munícipes despossuídos; financiando também um urgente e massivo programa publicitário não para brilhar no horário nobre da Globo atraindo turista para a “Ilhabela vida natural”, para a “Ilhabela de segunda à quinta é melhor ainda”, mas sim para inundar a cidade inteira de informação consistente que desperte imediatamente de sua fantasia criminosa essa multidão de ilhabelenses desatinados que pensam e vivem como se estivessem de férias ou orando sob mando leviano dos seus pastores em igrejas lotadas de fiéis em flagrante desrespeito à prática do distanciamento social.