FOTO EM FOCO: Carelli

Antônio Carelli tem noventa e três anos. Apesar do sobrenome italiano, seus olhos puxados e a sua longa barba branca desalinhada lhe conferem um ar oriental. Fala baixo, devagar, com um brilho intenso no olhar. Sua estatura é baixa. Anda com alguma dificuldade, apoiando-se numa bengala e isso imprime a sua figura uma estampa senhorial.

Mas ele não é um senhor de porte. Miúdo, levemente arcado pelo peso da idade, infunde uma sensação de fragilidade que não confere com a realidade. Isso porque abriga uma pulsão criativa ímpar que produziu e continua a produzir, apesar das limitações da velhice, uma obra artística de beleza e vigor extraordinários. São admirados e reverenciados os seus inúmeros desenhos, pinturas, murais, mosaicos e cerâmicas espalhados pelo mundo inteiro atestando o seu gigantesco talento.

Tivemos a grata oportunidade de ver uma amostra desse talento exemplar na sua individual que inaugurou uma remodelada Casa da Cultura em São Sebastião no final de agosto. O espaço antes acanhado e precário foi reordenado para transformar-se numa encantadora galeria que bem soube expor a arte magistral de Carelli.

Arte cosmopolita, arte possante de quem conheceu com paixão a vida e soube interpretá-la com a sabedoria que se adquire com a prática obstinada de buscar fazer o melhor sem se dobrar aos modismos.

A trajetória de Carelli deveria inspirar todo artista que se pretenda sério. Ela ilustra o esforço de construir uma carreira sólida nessa nossa época de brilhos tão fugazes.

E apesar da estatura assombrosa das suas realizações, Carelli nunca pecou pela vaidade que, afinal, poderia ter por causa do seu merecido sucesso profissional. Foi sempre humilde e não se incomodou de compartilhar com os mais jovens sua cultura enciclopédica, seu vasto conhecimento de exercer a arte com virtuosismo. Lecionou durante décadas em São Paulo.

Em Caraguatatuba, onde residiu nos últimos trinta anos, manteve seu atelier ativo como um centro de encontro de jovens artistas, fomentando e consolidando aptidões que hoje emergem como seus fiéis seguidores. Promoveu a arte do Litoral Norte em São Paulo durante largo tempo, auxiliando a projetar os artistas daqui no circuito elitizado da capital.

Quando trocou São Paulo por Caraguatatuba, entrou em contato com a exuberante paisagem da Mata Atlântica e a sua pintura concebeu um outro mundo. Um mundo de cores ásperas porém melancólicas; um mundo feito caleidoscópio multicolorido compartimentado por bordas negras com largas arestas cortantes. Tem grande familiaridade com a sua obra de muralista, trabalhando com mosaico. Organiza a composição pictórica da maneira que fazia seus mosaicos, juntando cacos coloridos para construir uma figura intricada e monumental.

Se suas pinturas lembram quebra-cabeças onde as peças se aglutinam com engenho e equilíbrio moldando um todo denso e coeso, seus desenhos de modelo-vivo transbordam gestualidade e expiram sensualidade.

Sua obra se enraíza na dos grandes mestres impressionistas, fauvistas e expressionistas e cresce potente, senhora de si. Com esses mestres do passado, Carelli proficuamente dialoga desfrutando de uma intimidade franqueada graças ao seu conhecimento profundo da história da arte, a sua sensibilidade aguçada, a sua intuição afinada e a sua explosiva energia criadora.

Suas paisagens se inspiram em nossas praias e matas ressaltando a grandiosidade única delas ao nosso olhar entorpecido de as ver rotineiramente. É com amor arrebatado que Carelli retrata esses lugares de tanto encanto que, nós, infelizmente, tão pouco temos prezado e cuidado haja vista a situação de absurda insalubridade a que chegaram as praias de Ilhabela, todas impróprias no topo da temporada e agora quase sempre sinalizadas com as bandeiras sanguíneas da CETESB logo depois de qualquer chuva mais grossa. Fato esse que se explica pela posição de Ilhabela no Índice de Coleta e Tratamento de Esgoto Municipal, a 632 em um total de 645 municípios. O que significa que Ilhabela, a despeito de ser tão privilegiada por estar em um local paradisíaco com seus cofres municipais abarrotados a estourar de tanto dinheiro de royalties do petróleo, é uma cidade de imundície, uma cidade determinada a se emporcalhar, uma cidade, literalmente, bosteada.

Na pintura “releitura de El Grego” Carelli pinta figuras humanas alongadas aparentadas as desse mestre do renascimento. Mas o cromatismo delas é tropical como se elas fossem transpostas para nosso tempo, tornando-se contemporâneas. Essa capacidade de estabelecer vínculos consistentes com a arte passada só o conseguem os artistas verdadeiramente abnegados ao seu ofício. Eles o exercem erigindo sua obra como um desdobramento, uma continuidade da obra admirável dos que os antecederam. Para isso é preciso evitar mirar o próprio umbigo como o fazem os “digital influencers” das redes sociais e estudar atentamente a infatigável sucessão de escolas e movimentos artísticos que construiu as referências do olhar iluminista.

Carelli é um mestre à moda antiga. É daqueles que cresceram em contato direto com o trabalho de lendas como André Lothe, Fernand Léger, Aldo Bonadei, Ataíde de Barros, Geraldo de Barros, Mário Gruber, Marcelo Grassmann, entre outros. Desenvolveu sua perspicácia estudando a pintura dos grandes mestres ao vivo, visitando museus na Europa e no Brasil. Atuou no Ateliê 15, grupo de pintores paulistanos, estabelecendo uma frutífera relação de troca de experiência. Frequentou as sessões de modelo-vivo organizadas pelo Museu de Arte de São Paulo e transplantou para Caraguatatuba esse aprendizado, tornando-o uma tradição em seu atelier que muito ajudou no crescimento dos seus alunos. Avesso às soluções fáceis, enfatizava a necessidade do estudo da história da arte e do exercício concentrado do desenho como alicerce da boa pintura.

O molde que construía artistas como Carelli está em desuso. Hoje no Brasil vivemos um momento de celebração da mediocridade, de desprezo à cultura e à ciência, de incentivo à destruição do meio ambiente, da primazia das “fake news”, de fanatismo religioso, de estímulo à violência, de desrespeito às diferenças e à diversidade. A arte de Carelli, por causa da sua integridade, não faria qualquer concessão, por mínima que fosse, a esses abjetos valores. É por isso mesmo que mais do que nunca precisamos dela para marcarmos a diferença; para preservarmos a esperança de nos contrapormos a essa desgraça que nos assola em direção à barbárie.

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