No vídeo de apresentação do Fórum Popular de Cultura de Ilhabela o artista plástico Zé Paulo contracena com a cantora Cris Lorena. Atravessa a penumbra do palco arcado sob o esforço de carregar uma de suas obras que deposita depois de um curto suspiro de alívio sobre uma mesa de ferro para em seguida, ao virar uma manivela fazendo a demonstração do seu funcionamento, dizer para Cris: essa é uma maquininha que faz um pãozinho dar uma volta em outro pãozinho.
Quem visitou a individual do artista, a Retratos Falados na Casa da Cultura em São Sebastião, teve a oportunidade de ver essa peça, colocada a frente de um poema também do expositor, intitulado “da consagração do inútil”. Os visitantes mais afoitos não se intimidavam de girar a manivela e constatar que, sim, o pãozinho de cerâmica dava voltas em torno do outro pãozinho imóvel no centro do aparato.
Era “da consagração do inútil” também o nome do objeto. E sua presença desaforada contagiava todo o espaço nos contando que a consagração a que ele se referia encampava tudo o que ali se mostrava. Assim, apesar de diferentes, as demais obras igualmente se adjetivavam como inúteis.
Num vídeo projetado em tempo contínuo justamente no lado oposto a essa geringonça de rodar pãozinho assistíamos a atribulada ação de Zé Paulo criando seu trabalho, literalmente, a ferro e fogo. O som que o embalava a gente não ouvia mas lia nos créditos finais que era do Led Zeppelin; rock pesado. Suando de pingar Zé Paulo se esgota no esforço de serrar, lixar, soldar suas tralhas que são muitas. São demais; ocupam todo seu atelier, na verdade, um local que bem passaria por serralheria ou oficina de funilaria. Não há como não perguntar por que alguém com tanto engenho não faz coisa útil ao invés dum negócio de virar pãozinho em volta de pãozinho. Poderia com facilidade construir parrudas grades que apartassem os rancorosos sempre de plantão daqueles por eles alcunhados de petralhas, comunas, vermelhos. Poderia erguer cercas robustas que protegessem os desatentos dos vândalos que em ato recente com furor empastelaram a FLIP, Festa Literária Internacional de Paraty, urrando histéricos “Lula tá preso, babacas” a ponto de sufocarem o hino nacional que tocavam em volume elevadíssimo enquanto soltavam rojões em direção à plateia aturdida do evento. Quem sabe o Zé com seu talento pudesse criar um gigantesco muro metálico corta chamas que nos protegesse todos do fogo que ainda se alastra em nossas florestas tascado com fervor lunático por fazendeiros no desejo de mostrar ao presidente que elegeram sua determinação de trabalhar conforme informou matéria do jornal Folha do Progresso da cidade de Novo Progresso. Parece anedota de mau gosto, mas não é e outra folha maior também noticiou.
Nessa nossa sociedade onde tudo se mede por sua serventia ainda que maléfica ela possa ser fazer coisa inútil é para poucos. E entre esses se encontram os que verdadeiramente fazem arte. Porque infelizmente muitos há que dizem fazê-la quando o que fazem é desonrá-la decorando a peso de ouro mansão de celebridade ou enfeando entrada, parque, praça de cidade.
Arte com a maiúsculo é pois o que faz Zé Paulo dia após dia entulhando seu atelier, sua casa, seu quintal com peças que não são troços nem trecos nem geringonças nem artefatos nem negócios. São esculturas, instalações, objetos artísticos.
Por serem tidas e celebradas como inúteis são livres, estupidamente livres. E então conseguem olhar a realidade sem filtros, não se dobrando ao bom gosto bestificado e ao politicamente correto. Nos devolvem esse olhar pondo a nu o cerne da própria vida em obras como a instalação próxima aos pãezinhos.
Uma cadeira de ferro, cadeira de tortura a choque elétrico onde hoje toda gente brasileira ainda lúcida e de bom coração todo dia se senta e sofre tão logo acorda e lê os jornais, ouve rádio, assiste TV. No seu encosto uma máscara de gás, muito bem-vinda no momento presente em que a fumaça das queimadas escurece o ar de São Paulo no meio da tarde. E mais, um capacete de ferro, desses que foram usados pelos soldados da revolução de 32; quem sabe seja útil novamente para o caso duma guerra contra a Venezuela ou na falta dela, guerra contra o resto do mundo civilizado que ora nos ameaça com aplicação de sanções. E atingindo seu clímax, a bandeira do Brasil abraçada no alto por um terço e encimada por uma miniatura do famoso patinho da FIESP. Nome da instalação: “de um governante”.
Havia uma sucessão de rostos; aqueles que faziam o retrato da exposição no seu cartaz. Olhares alucinados, sorrisos esgarçados, bocarras escancaradas; eles na realidade não falavam; tampouco sorriam. Gritavam a dor de viver.
Outras esculturas engendravam seres fantásticos. Algumas, de tão leves, flutuavam. E um grande barco – a nau dos insensatos – navegava aérea no meio duma das salas lembrando obra doutro emérito artista ilhabelense: Carlos Pacheco.
Subvertendo lugar comum, Zé Paulo faz pensar que a arte existe para que a vida nos baste no sentido dela ser suficiente para nós, de conseguirmos abraçá-la. Cada uma de suas obras torna a existência mais inteligível, mas não necessariamente, suportável. Por serem duras, cruentas, ferinas, mordazes ao se exibirem aos nossos olhos, elas, ao dessa maneira agirem, nos estimulam a sermos conscientes e reflexivos abrindo um diminuto parênteses em nosso cotidiano tão contaminado pela futilidade. E por isso, por um breve instante, esse nosso demente mundo se clarifica e nos basta.