Por Márcio Pannunzio
Construir castelos no ar. Com a magia do seu trabalho, Carlos Pacheco constrói castelos no ar. Na individual recente do artista na Fundação de Arte e Cultura de Ilhabela o que vimos são esses castelos. Construídos com lixo. Fazer do lixo arte é a tarefa que Pacheco abraçou e no seu exercício envelheceu.
Seu olhar de coletor amoroso resgata da morte fragmentos de mundo que as outras pessoas simplesmente não veem. São pedaços de madeira, plástico, sisal, granito, metal … Tem o dom de perceber nessas diminutas peças, sobreviventes. Resgata a dignidade dessas coisas abandonadas, amaldiçoadas a serem esquecidas, enterradas.
Com monástica paciência caminha pela praia recolhendo dejetos que o mar vomita na areia. Estão carcomidos pela salinidade, pelo sol e pela chuva. Não importa. Serão as pedras que vão edificar seus castelos. A par de arquitetar há que se praticar a alquimia. Se assim não fosse, como explicar a transformação do lixo em luxo? A troca de uma vogal muda a própria substância daquilo que vemos. Restituir ao mundo elementos desprezados e disparatados como que dando vida a músicos simplórios que uma vez unidos formariam uma orquestra para, magistralmente, tocarem uma sinfonia.
Então, vale a pena olhar atenta e vagarosamente as obras de Pacheco. Distinguir do que são feitas. Perceber a singularidade de cada uma das peças que as compõem. Não há, nesse processo, como não se encantar com o engenho, com a criatividade do artista. Com a sua incrível capacidade de combinar cacos, estilhaços que parecem nada ter a ver uns com os outros. Harmonizá-los estabelecendo conexões não percebidas, montando um quebra-cabeça intrincado.
Pacheco não nasceu na Ilha. Começou sua carreira em São Paulo e é contemporâneo de artistas hoje consagrados como Luiz Paulo Baravelli, Carlos Fajardo, José Roberto Aguilar, Carlos Vergara. Com eles participou de antológicos salões de arte, na época do fastígio desses eventos pautados pela democratização da arte. O artista poderia ter escolhido permanecer na metrópole, marcando presença no circuito das galerias descoladas. Seguramente, estaria agora vendendo suas obras por dezenas de milhares de reais. Porém, decidiu se estabelecer na ilha décadas atrás, criando sólidas raízes.
Sorte de Ilhabela que pode por isso contar com um artista estrelar. É pena que a cidade não o valorize a sua altura. É certo que os jornais a ele se referem como “um dos maiores ícones da arte em Ilhabela”. Causa estranhamento não ver em lugar algum da ilha escultura sua. Elas poderiam estar embelezando praças, repartições públicas; mas não estão e a sua ausência cria buracos na paisagem. Será que é pelo fato delas não serem de aço ou mármore, materiais robustos, capazes de melhor suportarem a ação do tempo e do clima? Pode até ser mas houve época em que essa questão da resistência dos materiais era irrelevante.
A rotatória de entrada da Ilha era uma área redonda, inteiramente gramada e sua topografia não era plana; havia em uma das bordas um morrinho. O cenário era minimalista e o destaque ficava por conta de dois colossais e depauperados troncos mortos de árvore ao pé da elevação. Expostos às intempéries, resistiam bravamente.
Tem quem diga que esses troncos ao mesmo tempo tão robustos por seu porte e tão frágeis pelo seu cerne corrompido pela ação do tempo e do homem fossem esculturas de Frans Krajberg que havia visitado a ilha. Nem é preciso contar quem é Frans Krajberg, ilustre habitante do Olimpo da Arte, para esses adeptos da sustentabilidade que se mudam às centenas para Ilhabela. Para quem não sabe, o Google está na ponta dos dedos.
O fato que importa é que, sendo esculturas desse mundialmente célebre artista plástico e fotógrafo nascido polonês e naturalizado brasileiro, nem de mármore ou de aço eram, mas de madeira e o processo de degradação fazia parte da essência delas.
No entanto, a Ilhabela acanhada dessa ocasião, de praias límpidas e trânsito sossegado, na mão dos seus mandatários desejou crescer veloz e livre de escrúpulos feito campo de soja derrubando floresta e resolveu-se pois começar o processo eliminando a mensagem ambientalista e poética que aquela rotatória transmitia. Um serviço de terraplanagem deixou-a inteiramente plana. Não se tem notícia do que aconteceu com os troncos. Falam que a metade de um deles sobrevive em pé solitária num canto da praça da mangueira e o outro, que era inteiramente negro, calcinado, morreu asfixiado por toneladas de lixo no aterro sanitário.
Uma escultura de mármore escuro, figurativa e grandiosa foi posta na nova rotatória. Representava um pescador; um caiçara desproporcionado em pé sobre a proa de uma canoa, de olhar firme perdido no horizonte, ombros retos sustentando uma vara com peixes pendurados, a cabeça fincada neles sem pescoço a ponto de tornar a peça alvo da troça popular. Achavam que era feia; que era brega. Foi ficando esbranquiçada de tanta bosta de pombo. Não se sabe quem a fez. Parece que um escultor zeloso com o mito do caiçara redentor: o homem forte do mar, o verdadeiro dono da terra litorânea. Esculturas bastante parecidas com ela adornavam e algumas ainda adornam praças em muitas cidades do litoral.
A ideologia delas é bem clara e em nome dela a palavra “caiçara” se encaixaria à perfeição nesse jingle que martela impiedosamente nossos ouvidos todos os dias. Agro é pop; agro é tech; agro é tudo. Ficaria desse jeito: caiçara é pop; caiçara é tech; caiçara é tudo. Banana para quem é imigrante; os reis da terra são os caiçaras.
Vítima da sua própria pregação intolerante foi substituída anos depois por uma escultura de imponência gigantesca, o adjetivo de monumental cabendo-lhe feito luva, inteiramente de aço inox, ofuscando a vista desde longe e destacando o papel da ilha como o de “Capital da Vela”, obra do escultor Gilmar Pina, esse, caiçara da gema. Suas esculturas se espalham por Ilhabela. Na praia do Engenho d’Água uma multidão delas compõem uma grande instalação ao ar livre. Um Jesus crucificado lança um olhar dolorido sobre a Vila inteira. O milagre da multiplicação dos peixes adorna a rotatória do Itaguaçu. Corredores marcam posição em frente ao Centro Esportivo da Água Branca. Um Waldemar Belisário metálico recebe os visitantes logo a porta do seu museu. E um Moisés gigante contrasta com o prédio delicado da Câmara Municipal, o Palácio da Princesa. Agarra com firmeza as tábuas dos dez mandamentos e sua postura hirta, ameaçadora parece cobrar probidade dos nobres edis que caminham minúsculos sob a sua sombra. O pescador caiçara sumiu. Não se sabe seu paradeiro e ninguém se importa.
Nessa altura da narrativa convém abrir dois parênteses para não melindrar quem não merece nem deixar de reconhecer boa ação feita.
Primeiro. Nada contra a arte de Gilmar Pina que tornou-se um caiçara cosmopolita e invejável graças ao seu trabalho de notável visibilidade a ponto dele ter sido agraciado com a comenda de Embaixador Cultural de Ilhabela. Gilmar é um ativista pela defesa da cultura e patrimônio de Ilhabela. Foi oportuna a sua cobrança emocionada pela restauração do teto da Igreja Matriz, recuperando a pintura de Nossa Senhora d’Ajuda feita por Alfredo Oliani que perdeu seus pés, na missa dos congueiros, ano passado.
Segundo. Nada contra o fato de governos municipais terem adornado a Ilha com as obras de Pina e terem pago por isso. Haverá quem grite que comprar arte com dinheiro público é supérfluo, extravagante. Que existe muita coisa mais importante no que gastar. Isso não é verdade. Cultura, educação, saúde, esporte, turismo deveriam andar todos juntos sem qualquer antagonismo. As cidades mais lindas do mundo são lindas pela beleza da sua arquitetura, das suas praças, dos seus monumentos, pela educação e cultura dos seus habitantes. São turísticas justamente pelo fato das pessoas se encantarem com a arte que exibem formando romaria para apreciá-la.
Parênteses fechados, vamos à finalização.
O nó da história é que, desde que plantado foi o pescador caiçara, parece ter vingado na Ilha a ideia de que a excelência no fazer, notadamente no escultórico, repousa exclusivamente na alma caiçara. Só assim para entender porque há tantas esculturas do Gilmar e nenhuma, nenhuma (bom, tem o busto do Almirante Tamandaré na Praça da Bandeira e os santos do Alfredo Oliani no jardim da igreja) de outro escultor que não seja nativo.
O poder público ilhabelense atualmente proclama em peças publicitárias e boletins que “somos todos caiçaras”. É um belo e politicamente correto bordão, porque pessoa alguma deveria ser discriminada por seu berço, seja ele caiçara ou estrangeiro.
Pois fosse ele levado ao pé da letra e a arte de Carlos Pacheco habitaria nossas praças. Ela e a dos demais talentosos escultores que na Ilha moram apesar de não serem nativos. E também a de outros tantos que sequer puseram os pés nela mas são artistas de inquestionável mérito.