congada, jubarte, memórias silenciadas

congada, jubarte, memórias silenciadas

coluna de opinião da série Foto em Foco

Márcio Pannunzio, texto & fotos

Sai ano entra ano e, felizmente, quase sempre, fazendo belo sol abençoado por São Benedito, há congada e ao seu redor, gente de postura espevitada brandindo celular na fuça dos congueiros. Entupindo de gigabites essas tranqueiras-deus por onipresentes já desde sempre. Que é pra onde vão essas imagens todas que não se fazem materiais, de papel. Sebastião Salgado diria que não são fotografias. E é tudo tanto e demais de tanto que no fim das contas vira que nem se contam e no dedo que as aponta e seleciona nasce calo pelo gesto inesgotável do rodar interminável dum quadriculado multicolorido em telinha cega olho.

Disputando espaço pelo melhor ângulo com essa aguerrida tropa de instagramadores há fotógrafos e fotógrafas alcunhados de profissionais porque fotografam usando câmeras trambolhos. Vão produzir as fotos que ilustrarão os jornais, revistas, noticiários e até as propagandas institucionais. Visitam Ilhabela pra tirar foto da congada e é fácil identificar quem são. Afora carregarem e apontarem máquinas grandonas, fazem macaquices; deitam no chão, se encolhem, se equilibram em cima de muros. E metralham cliques sem dó. A propagada oficial, tão zelosa em vender a cidade, bem poderia criar nova campanha: Ilhabela, paraíso do patrimônio cultural imaterial fotografável, instagramável para assim atrair turistas fotografistas.

Na Vila, ainda sobrevive. Até quando?

Patrimônio material, desses que o Iphan tomba, não tem mais porque foi tudo demolido pra construir em cima ou cortiço pra alugar no airbnb/ booking ou prédio de lojinha pra alugar pra empreendedor/ empreendedora recém-mudado pra viver fantasia/ pesadelo insular. E se havia ainda algum remanescente pra entrar na lista do Plácido, não tem mais nem ele nem a lista porque o arqueólogo foi despedido sumariamente no verdejante esforço de contenção de despesa municipal que corta pesquisa arqueológica bolsa atleta transporte estudantil remédio cachê de artista expositor … e aos poucos mais e mais o desprevenido populacho vai descobrindo o quê.
Afortunadamente, sendo imaterial, não há como cortar fisicamente aquilo que culturalmente significa a congada.

“Quem passar por Ilhabela e não conhecer a Congada ou sua história não conheceu esse lugar por meio desta sua grande riqueza cultural – patrimônio de natureza imaterial. Nesta estância de alto turismo, ainda se preserva muita história e tradição. Há memórias escondidas, silenciadas, ocultas que podem ressurgir a um bom ouvinte e observador atento.” Márcia Merlo isso nos conta na sua dissertação Congada de Ilhabela: o santo, o homem, a festa, o negro e o lugar. Publicada em setembro de 2011, continua atual; a história & tradição envolvidas na congada sobrevivem a despeito e há quem ache, justamente, por não depender do poder oficial. Pois se fosse por ele tutelado, poderia essa festividade secular ter se tornado um bizarro teatro de rua pra alucinar a turistada escravizada pelo instagram, facebook, tiktok, youtube, twitter…

E nem terminado esse tão curto período de tirar foto e fazer vídeo cultural, tira-se agora foto e se faz vídeo das gracinhas que as jubartes, involuntariamente, estão fazendo até pra plateia de travessia da balsa. Começou a temporada, não a de verão, de Ilhabela na sua fase maníaca, mas a temporada de baleias. Pra deleite da turistada deslumbrada, tem até Jubarte que feito cãozinho amestrado a obedece: – faz de novo lindona! E a jubartona realmente pula uma segunda vez em frente à balsa levando a patuleia ao delírio. Por causa disso o canal se congestiona. Não por causa das baleias, mas das embarcações quase afundando de tão cheias de turistas ávidos de vê-las, fotografá-las, filmá-las. E alguns as viram bem, bem de perto, berrando por isso histéricos de susto, pavor e encanto, sem que se possa saber qual dessas emoções gritou mais estridente a ponto de pôr pra correr, melhor dizendo, nadar pra longe, a baleia saltadora.

A coisa covarde tentou ver salto de baleia também muito de perto e acelerando seu jet ski, dela se aproximou perigosamente, em vão, porque ela não pulou. Ganhou um processo judicial que deu em nada. Ou melhor, deu: num segundo carnaval antecipado em São Sebastião.

dessa dá pra se aproximar na boa

Sebastião Salgado fotografou gente e bicho pra caramba. Não fotografou, porém, baleia no canal. Não teve tempo pra essa escolha. Faleceu e o Brasil inteiro o pranteou, se esquecendo que ele só viveu tanto graças a uma providencial escolha: exilar-se na França durante a ditadura militar. Porque se tivesse continuado em terra pátria, poderia ter sido assassinado depois de ter sido preso e torturado. Sebastião Salgado virou francês. Sobreviveu vivendo boa parte da sua vida nessa sua segunda pátria que abrigou tanto exilado político brasileiro, inclusive Fernando Henrique Cardoso, Celso Furtado, Maria da Conceição Tavares, Florestan Fernandes, Milton Santos, Paulo Freire durante o persecutório regime tirânico. Apesar da famílicia, do PL & Centrão, apesar do Trump, e até por causa deles, ainda mais forte é o apelo: anistia, não; anistia jamais.

Salgado fez sábias escolhas. Desafortunadamente, fazemos o tempo todo escolhas ruins. Jânio de Freitas nos diz que:

“O eleitorado poderia ter a culpa das más escolhas. Não tem. Antes de tudo, por ser mantido, em cerca de 4/5 do total, na carência mesmo do mais rudimentar em conscientização política.“

Em 2018, embora houvesse jornalão alardeando ser difícil escolher, não havia dificuldade alguma em fazê-lo quando se comparavam as biografias: de um lado um pensador, educador e funcionário público de vida ilibada e carreira exemplar e do outro, um ex-militar expulso do exército por terrorismo, tornado político do baixo clero envolvido em pequenos negócios escusos que o enriqueceram e enriqueceram sua família inteira e com presença constante em programas humorísticos por causa da sua bizarrice, escatologia, homofobia, antifeminismo, ultradireitismo. Escolheu-se desastrosamente mal. Ciência e cultura foram vilipendiadas; a democracia sob cerco, viu-se aviltada; a procuradoria geral da república quedou servil ao estado insano sob o tacão de procurador & procuradora pusilânimes; jornalistas foram alvo de perseguição; a fome, a miséria e a desigualdade cresceram; parte da população ensandeceu abraçando o fanatismo político e religioso  e parte dela morreu numa contabilidade macabra que se aproximou do milhão e por isso figurou o Brasil no segundo lugar no pódio de países com maior número vidas perdidas na pandemia do corona vírus. Em 2022, elegeu-se uma choldra pro congresso que ora cria crises e por elas confere à casa o rótulo de “congresso inimigo do povo”. Em São Paulo, entre aquela biografia brilhante do Haddad e a medíocre do Tarcísio vassalo do bolsonarismo, escolheu-se a desse sujeito que fez questão de logo se fotografar quebrando martelo em leilão polêmico e, recentemente, envergando, orgulhoso, bonezinho trumpista. Privatizou serviço essencial alienando a preço baixo a SABESP; arruína o ensino estadual e precariza a segurança pública e num primeiro momento, fez pouco caso do empresariado e trabalhadores impactados com o tarifaço. Não dá pra esquecer também da sua fala absurda em favor do seu candidato à prefeitura, no fim eleito, acusando falsamente o derrotado duma barbaridade. E a eleição desse prefeito mixuruca foi outra péssima escolha.

Seria desejável que a escola pública nos ensinasse a escolher bem. Não tem ensinado. Ou quando, excepcionalmente o faz, a governança obtusa aliada à politicagem oportunista, acossa e penaliza quem teve a ousadia de ensinar.

ilha..bela foi projeto de exposição, livro digital, site, visita guiada, curso de fotografia de rua. Duzentas fotografias de rua, todas tiradas na ilha, impressas em papel fotográfico adesivado em placas de pvc com 2mm de espessura e 50cm na sua maior medida horizontal ou vertical, seriam fixadas com fita dupla face no tapume de alumínio que cerca o teatro municipal de Ilhabela, criando um enorme mosaico supercolorido.

o anormal normalizado

Anselmo Tambelline, candidato duma esquerda sem chance de governar no passado e presente, visto que a escolha eleitoral da população ilhabelense tem sido francamente conservadora, para não dizer reacionária, dizia que esse prédio arruinado, inconcluso deveria virar o museu da corrupção.

Vai muito, muito além disso. É um magistral monumento que mimetiza o que é Ilhabela. Um lugar que poderia ter sido e não é. E talvez, diante agora da crise financeira municipal que alardeiam com estardalhaço, nunca será.

É um fantástico e fantasmagórico edifício grafitado e pichado sobrevivendo morto como enclave num bairro de ricaços feito ilha dentro duma ilha. Mansões o cercam e uma se destaca acima de todas: a sede da fazenda Engenho d’Água. Que histórias nos contariam aquelas paredes ancestrais? Que memórias ocultas, silenciadas à força, esconderiam? Numa ponta da praia, há esse patético prédio de cultura esfrangalhado e noutra ponta, habita um conjunto de estátuas que alcunharam de presépio de lata. Virou atração turística que não é de graça porque a prefeitura paga, desde 2017, aluguel pro dono delas. O Tribunal de Contas do Estado de São Paulo recomendou que esse negócio acabasse. Quem escuta o que recomenda esse tribunal?

a mansão da fazenda

o presépio de lata

a ruína milionária

Essa ruína numa esquina milionária, ladeada pela fazenda e presépio metálico, faz dessa praia um lugar singular onde aquela figura torturada da pintura o grito, de Edvard Munch, encontraria lugar melhor do que aquele da ponte sobre o nada. Quem escuta esse grito se pela avenida transita um povo surdo?

A fotografia de rua, revelando o insólito camuflado na banalidade cotidiana, poderia ser capaz de gritar com energia mais alta e vibrante, sobretudo nessa situação de compor uma colcha de retalhos sobressaindo impactante no meio dessa atípica paisagem. Poderia chamar a atenção de quem passa com pressa, sem enxergar o que a publicidade institucional busca ocultar; poderia, enfim, tornar tragicamente visível aquilo que nos acostumamos a normalizar, apesar da sua flagrante anormalidade.

ilha..bela foi projeto que não se fez escolha. Entre sessenta e quatro concorrentes do edital PNAB 2024, figurou na inglória 59ª colocação.

ilha..bela. Entre esses três pontos, vive um mundo, um sistema solar, uma galáxia, o universo… E multiversos. Quem sabe nalgum deles ilha..bela fosse escolha. E um transeunte poderia então parar em frente ao turbilhão de fotos, o olhar devagar, se deter diante duma delas e, num ato ligeiro, a furtar, levando-a consigo. Seria essa uma má escolha?

O grupo proponente do projeto que malogrou acharia que não. Escreveu que “se acontecer dalguém gostar demais duma foto e não resistir à tentação de subtrai-la, a gente não vai ficar chateada. Seria esse até um fim glorioso para ela: que fosse, pouco a pouco desvanecendo, as pessoas levando os pedaços que dela gostarem muito pra suas casas, – onde, pois, ela sobreviveria reanimando memórias -, até que aquela massa cinzenta voltasse a incendiar sob o sol da tarde, ofuscando nossa visão e nos lembrando novamente da triste ilha que existe dentro da ilha.”

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