foto em foco: ficando a ver navios

ficando a ver navios

Márcio Pannunzio, texto & fotos

coluna de opinião foto em foco

Para fazer arte, basta pouco, muito pouco. Educadores fora da caixinha sabem disso. Doroty Marques é artista revolucionária que vai além de fazer arte; ela transforma a vida das pessoas alargando exponencialmente seus horizontes de maneira que escola alguma faz.
Criança faz arte foi seu projeto transformador que principiou na década de oitenta, continuando pela seguinte. Faz tempo e hoje ninguém mais se lembra, Doroty esteve na ilha para o semear, mas infelizmente, não encontrou o solo caridoso doutros locais onde ele frutificou.

No dia 12 de dezembro, domingo à tarde, o re-percussão tomou conta da praça coronel Julião na Vila e festivamente provou que sim, criança faz arte e com muito, realmente muito pouco: criança faz arte batendo lata.

A praça lotou de tantos alunos do projeto, desde criancinhas até velhinhos, seus familiares e amigos e gente de tudo quanto é canto da ilha e fora dela compondo uma animada e hipnotizada plateia. No meio dessa multidão plural, só não se viu autoridade da prefeitura e da câmara.

Ponto alto dessa festa que era a celebração do êxito do re-percussão foi quando o grupo de maracatu Marabantu aflorou e transbordou da praça para se apossar das ruas da Vila com sua batida enérgica e dançante debaixo dum aguaceiro de verão.

Chuvarada que parecia banhar o povo para o acariciar, refrescando o calorão do bater dos tambores.

Esse pelotão de gente de todas as cores, tamanhos e crenças convivendo numa felicidade contagiante forneceu, involuntariamente, a melhor foto para a campanha oba oba oficiosa é tempo de viver Ilhabela.

No momento em que transpôs o funil do passeio da praça e verteu para o calçamento histórico de paralelepípedos, percutindo seus instrumentos e gingando, era como se um aluvião de alegria e luz se derramasse na cidade criando um tempo mágico e único; o tempo duma Ilhabela em que vale e bastante a pena, viver.

Pena que no instagram e facebook dos manda-chuva da cidade, fotos outras, tão sem sal, toscas e foscas, foram as que se viram.

Esse projeto que exibiu seus brilhantes resultados nesse fim de ano é fruto de árvore plantada lá atrás, no apagar das luzes da gestão anterior, no edital 221/2020, publicado em 22 de dezembro do ano passado e que ficou conhecido entre os artistas como edital de fomento. O valor desse concurso é uma fração mínima do orçamento atual da cultura que privilegia obras novas e de reforma de espaços culturais existentes.
Patrocinou dez projetos selecionados por uma qualificada banca examinadora que vão brilhar e gerar desdobramentos.
Só de fotografia, dois foram premiados. Na Retrato da Comunidade, Felipe Samurai expôs na Fazenda Engenho d’Água fotos ao ar livre, tamanhos variados formando um enorme e colorido mosaico com estatura de outdoor, de moradores do Morro dos Mineiros, conferindo o merecido destaque a pessoas de muito saber. Um saber que não é o da academia ou o das bancas de advocacia com sua fala rebuscada e ininteligível, mas todo um conhecimento ancestral e poderoso, injustamente desvalorizado. A comunidade do título da exposição é o alicerce dessa cidade cuja publicidade institucional faz vassalagem à ricaiada brega esnobe e quer porque quer por pra correr os turistas de um dia. Gente dessa comunidade, em lazer na praia, corre o risco de ser hostilizada por ser confundida com esses estupidamente execrados turistas. Felipe se entranhou no âmago do morro para fazer retratos poéticos e vigorosos, à altura dos fotografados que encararam sua câmera com serenidade, transmitindo o carinho, a humanidade, a beleza e a inteligência duma Ilhabela sem visibilidade pra essa poderosa casta entretida em especular e enriquecer à custa de mercantilizar a Ilhabela que embrulham feito paraíso natural apesar das suas ruas indigentes congestionadas e das suas praias e cachoeiras  bosteadas.

Os inspirados retratos do Felipe nos contam a história duma Ilhabela bela no presente e as da exposição Villa Bela – memória iconográfica de uma bela ilha, duma Ilhabela que ficou longe, distante no passado, permanecendo para a eternidade, bela.

E nem foi um longínquo passado. O período compreendido foi de 1900 até 1980 e trouxe muita recordação boa. Apesar das fotos resgatadas do esquecimento serem quase todas elas de fotógrafos amadores, conseguiram perenizar momentos encantadores.

O que se poderia falar diante desse projeto de Maristela Colucci? Apenas lhe sugerir que o espelhasse num site ou blog, local virtual melhor aparelhado e mais acessível que o instagram porque nem todo mundo usa esse aplicativo. E, enfaticamente, sugerir à nova administração municipal de vocação obreira, que agora é mais do que hora para se ter em Ilhabela um Museu da Imagem e do Som para acolher esse valioso material iconográfico agora exposto e aquilatá-lo acrescentando-lhe maior repertório, inclusive, sonoro, dos depoimentos, canções, modinhas, trovas, repentes que a vida feérica do presente vai soterrando. Poderia esse museu surgir de uma desapropriação de palacete ou então, duma nova e modernosa construção; não se deixando de reservar no entanto, uma verba que garanta a sua manutenção e a contratação de funcionários capacitados e motivados.

À guisa de modesta sugestão, poder-se-ia edificar um novíssimo e muito portentoso prédio para a Câmara Municipal, repleto de celas monásticas, quer dizer, de salinhas para os diligentes assessores dos nobres camaristas, numa localização mais próxima do insular extrato evangélico conservador patrioteiro que os atuais edis tão bem se esmeram em servir ou mais perto do Palácio Sauna de Cristal Matagado, a sede do poder executivo insular. Assim, o então desocupado palacete da Princesa sediaria o Museu da Imagem e do Som de Ilhabela, o MISILHABELA. E desocupado conviria ser também, seu jardim, da furibunda franksteiniana estátua de inox de Moisés com suas tábuas de mandamentos metalizadas, indo ela adornar a novíssima casa das leis ilhabelense.

Foi notícia efusivamente comemorada nas mídias oficiais a premiação do Plano de Gestão do Patrimônio Cultural de Ilhabela no Prêmio Rodrigo Melo Franco de Andrade. Sem dúvida, ótima novidade, mas teria sido oportuno dizer que seu criador foi o arqueólogo, historiador e fotógrafo Plácido Cali. Faz tempo Plácido pesquisa sítios arqueológicos na ilha e essa premiação destaca sua capacidade de elaborar e apresentar através da sua firma, um plano de gestão consistente, exemplar. E seria igualmente oportuno lembrar que esse plano não foi escrito há pouco. Foto do dia 27 de janeiro de 2020, duma ilha ainda sem gente mascarada por causa do coronavírus, foto essa presente na área de notícia do site oficial da prefeitura, mostrava Plácido Cali sentado ao lado do seu amigo Arthur Carlos, o fotógrafo ilhabense dedicado, principalmente, a fotografar a cultura e vida caiçaras e ao lado de várias participantes do Conselho Municipal de Cultura numa grande mesa que ocupava quase inteiramente uma sala do Palácio Sauna de Cristal Matagado onde acontecia a reunião. Celebrando, justamente, a apresentação do Plano de Gestão do Patrimônio Cultural de Ilhabela. A legenda da foto era: “o plano deverá ser integralmente implantado até o fim do ano e os resultados já serão visíveis nos primeiros meses”.

Os meses que logo se seguiram foram de espanto, perplexidade, dor, revolta, indignação diante da pandemia do coronavírus.

Artistas, educadores, artesãos capitaneados pelo Fórum Popular de Cultura de Ilhabela tiveram marcante atuação reivindicando da prefeitura e da câmara atitudes que mitigassem não apenas o sofrimento do setor cultural ilhabelense que teve boa parte dos seus integrantes vivendo em condição de vulnerabilidade econômica por causa da paralisação dos eventos culturais, mas atitudes que amparassem todo o povo ilhabelense em condição de vulnerabilidade. Foram várias cartas abertas às autoridades sugerindo a tomada de ações que robustecessem o combate à pandemia.

Na sequência, a semana de arte virtual de Ilhabela de 2020 foi um grande evento cultural criado a partir da sintonia entre a secretaria de cultura e o Fórum e resultou em mais de cinquenta horas de vídeo construindo um multifacetado painel criativo com cento e cinquenta amostras do trabalho de artistas da ilha. Permanece no ar como entretenimento de qualidade não só para a população da ilha, mas para qualquer internauta do planeta.

O cadastro cultural, obra da secretaria de cultura da época, mapeou os produtores culturais da cidade. Hoje, infelizmente, o site está fora do ar.

Fora do ar não ficaram todos os concorrentes à prefeitura na disputa eleitoral dos últimos meses de 2020 que atenderam ao convite do Fórum para participarem de programas ao vivo na internet. O ponto alto deles era o momento da assinatura do termo de compromisso com um conjunto de propostas elencadas pelo Fórum; na verdade, um robusto plano de ação para democratizar e profissionalizar a gestão municipal da cultura. Apenas um dos candidatos se recusou a assinar alegando que suas propostas para a área já englobavam noventa por cento das apresentadas no documento e que não poderia se comprometer com as restantes diante da possibilidade de não haver previsão orçamentária.

É ele quem agora governa Ilhabela e isso talvez justifique o porquê deste ano estar se encerrando sem que edital algum de fomento tenha sido lançado. O que significa que no próximo ano não teremos em Ilhabela o re-percussão compondo o melhor das fotos para a publicidade da tempo de viver Ilhabela, nem mostras com a qualidade da Retrato da Comunidade ou Villa Bela – memória iconógrafica de uma bela ilha, nem projetos feito os outros sete premiados por um juri qualificado norteado por uma análise minuciosa da competência dos proponentes, da excelência das propostas e da sua capacidade de impactar positivamente a sociedade.

Acontece então dos produtores culturais de Ilhabela depois de experimentarem a chance de pensarem e trabalharem para dar o melhor de si para o lugar que habitam, a exemplo do que ocorre em várias cidades que profissionalizaram e democratizaram a gestão e a produção da cultura, vão ficar só com a lembrança desse gostinho que é um salutar gosto de bem fazer para ficarem, literalmente, a ver navios.
Desses colossais, cafonas prédios shoppings flutuantes que vomitam não turistas de um dia, mas turistas de poucas míseras horas na vila da ilha que muitos já não acham mais tão bela quanto era.

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