brasil pátria amada brasil, pesadelo de morte e destruição
As fotos da galeria acima compõem a série br459km79.3 que apresentei na época da sua criação com o texto a seguir.
Havia uma estrada esquecida serpenteando entre as montanhas. Uma estreita faixa de asfalto sem acostamento, com trânsito sossegado, fluindo gota a gota por sucessivos túneis verdes: a copa das árvores se enlaçava no alto e onde elas eram baixas ou inexistiam, grandes rasgos de céu vertiam luz inundando as margens e as encostas próximas.
Num domingo antigo, duas pobres senhoras devotas caminhavam rente a essa estrada retornando da missa quando foram atropeladas por um caminhão desgovernado dirigido por um bêbado. Morreram ambas e no local, duas cruzes de concreto brancas foram fincadas na terra arroxeada e crua, donde toda erva foi diligentemente capinada; paralelas, miravam o asfalto, dele distantes uns cinco metros. Uma laje de concreto, de uns cinco centímetros de espessura, com uma área de menos de um metro quadrado, foi deitada rente ao chão em frente às cruzes.
Então, sobre essa rústica mesa pedregosa foram as pessoas simples do lugar ajeitando santos de gesso, estatuazinhas pagãs, terços, colares, cordas, flores de plástico e flores de verdade colhidas nos jardins e nos campos, numa profusão tamanha que, em pouco tempo, aquele pequeno espaço se fartou. E um quadro absolutamente caótico, grotesco, bizarro se materializou incendiando a paisagem. Uma diminuta obra coletiva, sempre em mutação, de celebração da morte e, paradoxalmente, também, de celebração da vida.
Exposta às intempéries, enraizou-se no mundo como monumento vivo.
Ao ver essas fotografias, o poeta, crítico de literatura, ativista antirracista e antissexista e professor da Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Henrique Marques Samyn, escreveu a apresentação crítica da fotografia como celebração da vida.
Fato é que fotos e textos datam de 2014. Dum tempo que o olhar desesperado e desesperançado de agora saúda como idílico, a despeito das inquietações que além de o terem sacudido, gestaram a desgraça que nos atropelou e ora nos massacra.
Bem antes, é certo, do surgimento e da consagração entusiástica por mais de cinquenta e sete milhões de brasileiros dessa governança funérea brasil pátria amada brasil que é o tema da coluna.
O que invalidaria a exibição dessas fotografias neste espaço; não é mesmo?
A justificativa delas aqui se mostrarem é a de relembrar essa prática primitiva de reverenciar a morte trágica como um acontecimento lastimável, sujeito ao enlutamento perene. A sua patente e dolorosa ausência nos dias correntes é notória como marco maior da incivilidade e da visceral desumanidade que o brasil pátria amada brasil despudoradamente instaurou e sadicamente celebra e em vista disso, essas fotos que não são fotos de horror, mas sim de ternura e devoção, merecem e devem figurar na coluna.
A política genocida em curso literalmente soterrou qualquer demonstração de afabilidade comunitária nessas covas que não mais se contam por tantos milhares o serem nelas imediatamente e humilhantemente sepultados pelo país inteiro medalhado campeão no pódio infame do assassínio planetário cruelmente paginado pelo coronavírus.
Num número estatístico de frialdade cadavérica com um monte de casas decimais enfileiradas que, não resta dúvida, poderia ter sido bastante minorado fossem implementadas as medidas sanitárias recomendadas pela ciência e estimuladas pelo humanitarismo.
Mas aqui não foram.
E os mortos, tantos demais exorbitando qualquer cálculo, não terão cruzes decentes que os nomeiem e pela sua memória esfrangalhada pela doença e pela dor de falecerem muito antes da última das horas, zelem.
A gente do interior distante das cosmopolitas metrópoles antenadas com as modas fúteis do momento nunca pensaria que a humilde construção coletiva que no correr dos anos erigiu à beira de estradas, muitas delas esquecidas nos mapas que não se imprimem, um dia seriam tidas como exemplo maior de empatia e arte.
Nesse país presidido por virulentos egressos da ditadura militar que nos infelicitou impunemente por décadas.
E que desprezam cinicamente aquelas centenas de milhares de vidas pavorosamente falecidas sem direito ao velório digno; sem poderem ser verdadeiramente pranteadas por seus amigos e parentes num rito fúnebre de derradeira despedida.
Não apenas a maldade se escancarou desbragada, desavergonhada, nesses nossos viróticos dias de brasil pátria amada brasil; viralizou junto com ela, numa nocividade e transmissibilidade superior ao do coronavírus, a psicopática indiferença pela dor e pela morte dos outros como odiosa herança do discurso presidencial de sobrepor a economia à vida, chegando ao cúmulo de invocar defender a liberdade e a democracia em sua obtusa fala bravateira instigadora do obscurantismo e da barbárie enlouquecendo a nação por ele e seus acólitos arruinada.
E por isso, enquanto se empilham formando montanhas, corpos lívidos amortalhados em sacos plásticos dum negrume absoluto de fim de mundo para rapidamente os ocultar da vista pública os atirando imediatamente em buracos indigentes, mais banalizam esse flagelo eloquente essas voluptuosas todo dentes apresentadoras de tetas arrebitadas e bunda empinada no equilíbrio instável dos seus saltos agulha num patético coro com os truculentos animadores de torcida mundo cão almofadinhas em seus terninhos de tergal Ducal, brilhando ambos, noite e dia, na impiedade das telas das tvs.
Quase quatrocentas mil cruzes santas pelas estradas.
Que jamais serão feitas. Comissão Parlamentar de Inquérito alguma terá a hombridade de lembrar dessas incomensuráveis almas penadas como foram recordadas essas duas beatas mortas na br459km79.3.