Cientistas estão monitorando um branqueamento em massa de corais no Litoral Norte que, segundo eles, é um dos eventos mais graves desse tipo já documentados no Brasil. O fenômeno está associado a um superaquecimento das águas costeiras do sudeste, registrado no início deste ano, com temperaturas que chegaram a 33 graus Celsius.
“Estamos vendo coisas que nunca vimos antes por aqui”,
diz, alarmado, o pesquisador Miguel Mies, do Instituto Oceanográfico (IO) da USP. “Olha a cor desse coral”, completa ele, apontando para a foto de uma colônia de coral-cérebro, totalmente branca, reluzindo em meio às rochas no mar de Ubatuba.
O branqueamento é uma resposta natural de defesa dos corais a situações de estresse térmico, mas que pode levá-los à morte em condições extremas — que, segundo os cientistas, estão se tornando cada vez mais frequentes no mundo todo.
Quando a temperatura ambiente fica muito elevada, por muito tempo, os corais perdem as suas zooxantelas — microalgas fotossintetizantes que dão cor aos seus tecidos e são a sua principal fonte de energia, mas que produzem compostos nocivos quando a água fica quente demais, forçando os corais a expeli-las.
Consequentemente, eles ficam brancos e incapazes de se alimentar via fotossíntese durante esse período. É como se as folhas de uma árvore perdessem seus cloroplastos (estruturas em que fica a clorofila), com a ressalva de que os corais são animais, e não plantas.
Dependendo da intensidade e do tempo que durar esse branqueamento, o coral pode voltar ao normal, ou morrer.
Eventos recentes de branqueamento em massa, associados ao aquecimento global, já mataram diversos recifes ao redor do mundo, incluindo grandes porções da Grande Barreira de Corais, na Austrália.
O alerta de que algo ruim estava para acontecer por aqui também foi dado no início de janeiro pelo Coral Reef Watch, um sistema global de monitoramento e alertas de branqueamento mantido pela NOAA, a agência nacional de pesquisas atmosféricas e oceânicas dos Estados Unidos.
A previsão era de um aquecimento muito acima da média nas águas do sudeste brasileiro, com alto risco de branqueamento de corais. E foi exatamente o que aconteceu.
Cientistas correram para a água e ficaram espantados com o que viram. “Tomamos um susto, pois estava muito pior do que a gente imaginava”, conta Mies, que monitora o evento em diversas praias de Ubatuba, em parceria com o aluno de pós-graduação Thomás Banha.
O nível de branqueamento chegou a 80% das colônias de coral-cérebro Mussismilia hispida, que é a principal espécie da região. Ou seja, de cada 10 colônias de coral, oito estavam branqueadas.
A anomalia térmica durou quatro semanas, de meados de janeiro a meados de fevereiro, com temperaturas que ultrapassaram os 30 graus Celsius durante vários dias seguidos — bem acima da temperatura média normal da água para essa época do ano, de 27 °C.
Isso, graças à presença prolongada de um sistema de alta pressão atmosférica conhecido como ASAS (Alta Subtropical do Atlântico Sul), que impediu a chegada de frentes frias à região.
Um estudo publicado no início deste mês na revista Nature Climate Change mostra que a ocorrência de ondas de calor aumentou muito nos oceanos nos últimos 30 anos e a tendência é que a situação piore mais ainda com o agravamento do aquecimento global.
Alcatrazes
Outro ponto que está sendo monitorado é o Arquipélago dos Alcatrazes, situado a 35 quilômetros de São Sebastião, que abriga uma grande população de Mussismilia hispida e várias outras espécies de coral e vida marinha em geral.
A extensão do branqueamento nas ilhas foi menor do que em Ubatuba. Cerca de 30% das colônias de coral-cérebro localizadas até 6 metros de profundidade ficaram brancas e, abaixo disso, menos de 5%. Os cientistas acreditam que essa diferença seja reflexo da forte termoclina (variação de temperatura) que ocorre por volta dessa profundidade em Alcatrazes, onde uma massa de água gelada mais profunda se choca com a água mais aquecida da superfície.
Essa água fria estaria agindo como uma espécie de manto protetor contra o aquecimento, “fazendo com que os corais mais fundos de Alcatrazes não branqueassem tanto”, disse o pesquisador Marcelo Kitahara, professor do Departamento de Ciências do Mar da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), em Santos, e colaborador do Centro de Biologia Marinha (Cebimar) da USP, em São Sebastião.
Ainda assim, há motivos de sobra para preocupação. Além do branqueamento, os pesquisadores notaram uma ocorrência muito maior de doenças de origem microbiana nos corais; o que pode ser um sinal de perda de resiliência do ecossistema.
“Doença é uma coisa que a gente quase não via em Alcatrazes, e agora vimos várias colônias doentes”,
relata Kitahara.
Ele e uma equipe do Cebimar estão monitorando desde janeiro 10 colônias de Mussismilia hispida no arquipélago, para ver como cada uma delas responde ao branqueamento e às doenças. Até agora, duas morreram.
“Muitas vezes elas conseguem recuperar as zooxantelas e voltar ao normal, mas depende muito da intensidade e da duração do branqueamento”, explica a bióloga Kátia Capel, do Cebimar. “Vamos ver o que acontece quando estabilizar a temperatura.”
O monitoramento é feito com apoio das equipes do Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio), que cuidam das áreas protegidas de Alcatrazes.
Teste de resiliência
Os corais-cérebro do gênero Mussismilia só existem no Brasil e são famosos pela sua resiliência — ou seja, pela sua capacidade de se adaptar e se recuperar de situações adversas, que normalmente seriam letais para outros corais. Esse mesmo grau de aquecimento, por exemplo, já teria “fritado” grande parte dos recifes no Caribe ou no Pacífico.
Provavelmente por conta disso, a mortalidade observada até agora em eventos de branqueamento no Brasil tem sido baixa. Em Ubatuba, está em torno de 2% apenas, segundo Mies. Ou seja, a tendência é que a maioria dos corais-cérebro branqueados se recupere, pelo menos por enquanto.
O problema, dizem os cientistas, está nesse “por enquanto”, que ninguém sabe quanto tempo mais vai durar exatamente. Provavelmente pouco.
A preocupação maior não é tanto com esse evento de branqueamento específico, mas com o acúmulo de eventos desse tipo ao longo dos anos. “Os corais podem até voltar agora, mas será que aguentam o próximo verão?”, questiona Mies.
A recuperação completa, segundo ele, dura praticamente o ano todo e funciona como a regeneração de uma ferida: quanto maior o corte, mais tempo leva para cicatrizar.
“O evento desse ano foi muito além do que eles estão acostumados”,
diz o pesquisador; o que significa que os corais podem não estar suficientemente recuperados para aguentar uma nova onda de calor no ano que vem.
Só na última década, houve três grandes eventos globais de branqueamento: em 1998, 2010 e 2014 — com duração aproximada de um, dois e três anos, respectivamente. Ou seja, os eventos estão mais frequentes, mais duradouros e com um tempo de recuperação cada vez menor entre eles. Desse jeito, não há coral que aguente, alertam os pesquisadores; nem mesmo o Mussismilia hispida.
“O oceano está aquecendo e estamos percebendo de forma cada vez mais intensa os efeitos disso sobre os corais. É muito preocupante”, diz Kitahara. “Os recifes de coral estão mudando de maneira muito rápida e não serão mais os mesmos daqui a alguns anos”.