Em tempos agora pretéritos o jornalista, fotógrafo, historiador e escritor Nivaldo Simões com alarde chamava nossa atenção para o risco de Ilhabela se transformar no Guarujá que, naquela época, vivenciava um estado de degradação social, ambiental e urbana que só fez se agravar por culpa de um modelo de planejamento urbanístico e econômico orientado pela especulação imobiliária e pela exploração inconsequente do predatório turismo de temporada.
Felizmente o flanco de Ilhabela voltado ao mar não foi muralhado por uma sucessão interminável de espigões graças à vigência da proibição de edificações acima de dois pavimentos. Mas a nossa pujante indústria da construção civil, prestativa aliada do movimento em prol da valorização imobiliária, opera a toda, especialmente para a edificação de habitações de moradia e de veraneio de padrões variados; desde as simplórias, as de classe média, as dos bichos grilos até as de gente muito muito endinheirada. Nós as enxergamos se alastrando feito cogumelo em bosta de vaca depois da chuva; incontáveis. Ocupando, a dos ricos, lugares encantadores; a dos remediados, lugares sem brilho e a dos pobres, lugares inóspitos.
Um exército de trabalhadores constrói faça chuva faça sol essas casas. Muitos vêm de fora, trazidos pelos seus contratantes para atender seu desejo de mão de obra barata e melhor qualificada. Quando terminam, alguns dos operários que se maravilharam com a ilha, decidem ficar. Sem recursos, acabam morando em cortiços ou lançando nova lenha à fogueira da favelização, erguem barracos para fugir do aluguel.
As mansões e as casas de veraneio demandam vários serviçais: arrumadeiras, faxineiras, cozinheiras, jardineiros, caseiros, motoristas… Ganham pouco e não tem como morar pagando aluguel além das suas posses ou construir em regiões melhor urbanizadas, as meninas dos olhos da especulação no mercado imobiliário. Vão residir onde a terra tem pouco valor, nas franjas e áreas de risco da cidade, impactando o meio ambiente. Se lhes faltam condições materiais para edificar com segurança e conforto, como poderiam preocupar-se em atender as exigências sanitárias normatizadas por lei? E haja poluição do lençol freático, dos cursos d’água, do mar. Com o tempo, trazem para morar seus familiares e amigos da terra natal porque afinal, perto dos locais que deixaram, de tudo carentes, – posto de saúde, hospital, escola, emprego -, Ilhabela é para esse povo tão desamparado, o céu na terra.
E aqueles que residem nas grandes e médias cidades assoladas pela violência, o desejo de mudar para a ilha apaixona porque por aqui se caminha desarmado do medo onipresente que os oprime onde vivem. Se não podem realizar a fantasia de serem funcionários servindo na melhor empregadora da cidade, a Prefeitura Municipal, quebram a cabeça imaginando negócio rentável que subsista o ano inteiro. O saldo é negativo. Por maior que seja a quebradeira de cabeça, maior é a quebradeira de comércio que vemos inaugurar num dia e fechar noutro.
Por conta dessa imigração, Ilhabela não cresce e sim incha, estufa.
Todavia, como a conversa é sobre turismo, vamos a ele. Em nome dele munícipes com dinheiro correm torrá-lo construindo chalezinho para veranista. Os que não têm mas casa têm, tornam-se escravos do Airbnb, Alugue Temporada, Booking e congêneres e alugam quarto vago ou o próprio quarto ou até a casa inteira se abrigando em casa de parente não infectado pela moléstia da anfritionagem (ou seria anfriticretinice?) e por aí caminhamos numa afoiteza de Deus nos acuda.
Ilhabela no mapa turístico brasileiro é classificada na classe A. Mas essa classificação é igual a do problemático Guarujá e assim não dá para ficarmos nos ufanando. Continuamos reféns da sazonalidade vivendo de maneira maníaco depressiva. Na temporada, a cidade transpira embriaguez, irritação, delírio, insanidade. Fora dela, encolhe-se, deprime-se, adormece fatigada.
O calendário de eventos de Ilhabela é robusto. Nele existe coisa muito boa como a Semana da Cultura Caiçara, a Semana de Vela, o Festival do Camarão, Feira de Artesanato Caiçara na Praça, o longevo Salão de Artes Plásticas Waldemar Belisário, a Prova de Canoa Caiçara, o Xterra, o Brasil Ride, o Arena Cross… Há o meritório esforço de criar novos atrativos, principalmente, show musical e originou-se assim uma outra indústria. A que fornece infraestrutura, promove, escolhe, contrata e acolhe os músicos de matizes bastante diversificadas: jazz, bossa nova, rock, samba, pagode, funk, canto gospel, sertanejo universitário… Cabe estilo demais nesse pacote que se fosse deglutido inteiro causaria grande indigestão. Tudo muito beleza não fosse o fato de se gastar verba pública milionária abastecida pelos royaties do petróleo para financiar essa musicada toda. Por isso dizem à boca pequena que melhor uso ela teria caso fosse equanimemente repartida entre todos os moradores.
Cidades sem royalties e cidades sem vocação turística souberam e sabem sediar mostras, feiras, festivais que catapultaram seus nomes destacando-as no país e no exterior. A vizinha e pobre Paraty é exemplar. A Festa Literária Internacional de Paraty e a Paraty em Foco são bem conhecidas. São José do Rio Preto tem o Festival Internacional de Teatro. Gramado, o Festival de Cinema de Gramado. Tiradentes, Festival de Cinema, Gastronomia, Fotografia… Pesquisando se encontra exemplo que não se acaba. Ilhabela poderia seguir esse caminho sem necessidade de gastar os tubos, formando parcerias que arcassem com o maior custo. É preciso ter criatividade e competência para implementar acontecimento turístico que mobilize vários atores de qualidade inquestionável e que repercuta e tenha perenidade. Se a administração pública falha por falta de engenhosidade e talento, a sociedade civil falha também porque poderia contribuir mais, muito mais. O Pés no Chão faz belo trabalho há bastante tempo assim como o Instituto Ilhabela Sustentável, a Associação Barreiros, a Área de Soltura Monitorada Cambaquara. O ilha sustenta marca presença reunindo uma galera descolada. E o Instituto Baía dos Vermelhos veio para atrair público não só local, mas do país inteiro para ir num teatro no meio do mato, numa lonjura, para ouvir, vejam só, música clássica! Faz falta nessa lista modesta o Vento Festival que bandeou-se, depois de duas históricas edições na praia do Perequê, para o outro lado do canal, na vizinha São Sebastião onde encontrou a retaguarda que lhe foi aqui negada pela dificuldade de se aceitar e respeitar um pensamento fora da caixinha.
Com tanto morador bem intencionado, capacitado, criativo, culto; artistas, fotógrafos, cineastas, escritores, jornalistas; empresários de visão humanista, educadores, advogados e juristas defensores da probidade; médicos, biólogos, engenheiros, arquitetos e paisagistas sonhadores e com capacidade para melhorar a saúde dos habitantes e a do meio ambiente e embelezar uma cidade que demoliu quase tudo o que existia de arquitetura colonial e eclética e privilegiou alargar ruas diminuindo a faixa de areia das praias a consolidar o transporte alternativo; com toda essa gente legal morando aqui era de se esperar por uma revolução de costumes, uma revolução na cultura. Mas não há nem nunca houve. Onde andam essas pessoas que maravilhosa contribuição poderiam oferecer? Resolveram que por morar numa ilha, então, literalmente se ilharam?
E a imprensa ilhabelense que poderia estimular um debate fundamentado, substancioso sobre assuntos capitais que dizem respeito ao bem estar atual e futuro da cidade, escolhe exercer o colunismo social, o oba oba publicitário ou o jornalismo chapa branca. Existe o temor de que ao mobilizar o espírito crítico, se afronte o poder constituído. Balela. Num momento de profunda divisão ideológica, mais do que nunca é obrigação do jornalismo responsável nos clarificar com a luz da razão, ela ora tão alquebrada apesar de nos ter guiado aos tropeços da barbárie à civilização. E por isso, os poderes insulares executivo, legislativo e judiciário deveriam reputar o jornalismo sério não como um inimigo, mas como um aliado. Porque tem a respeitabilidade de propor e investigar questões importantes que poderiam passar despercebidas. Tem quem diga que fácil é criticar, difícil é fazer. Mas quem assim pensa se esquece de que para fazer o que quer que seja bem feito, fundamental é pensar antes e durante o fazer. E para pensar corretamente, nada melhor do que levar em consideração a visão alheia como aquela do Nivaldo Simões, exposta com conhecimento de causa e transparência em nome de uma genuína e aflitiva preocupação pelos descaminhos da ilha e publicada no finado único diário impresso do Litoral Norte, o Jornal Imprensa Livre, esse sim, um jornal farol a afastar as trevas da desinformação, da ignorância.
Ilhabela vida natural é um bonito slogan. Se o turista do reveillon, preso por horas e horas na fila da balsa; gastando horas para se deslocar em seu imponente suv prateado até a Vila ou a praia com bandeira vermelha da Cetesb; gastando horas esperando mesa no restaurante e horas aguardando o seu momento de passar pelo caixa do supermercado; depois de pagar quinze reais por uma latinha de cerveja morna e cem por uma diminuta porção de peixe congelado vindo sabe-se lá de onde e frito em óleo de soja velho; depois de disputar espaço para mijar na água do mar entupida de banhistas trôpegos de tão bêbados; depois de ter sido picado por dezenas de borrachudos; depois de ficar sem internet e no escuro devido ao apagão elétrico; depois de deixar de tomar banho por falta d’água; depois de dormir mal por causa do mormaço e da barulheira na vizinhança vai cair nessa história de Ilhabela vida natural, aí é, realmente, outra história.
“Numa manhã, uma praia despertou assaltada por cadeiras brancas de plástico vagabundo, volteando mesas com guarda-sóis de propaganda alcoólica, tudo criando um labirinto de sinuosidades cortantes. Não se podia caminhar livremente mais. Nas manhãs seguintes, batalhões das mesmas desgraciosas cadeiras invadiram, sem encontrar resistência nenhuma, a orla toda. Na sua retaguarda, toscas construções de madeira e sapê, num quadradismo patético, surgiram regurgitando frituras indigestas. Consumou-se assim a radical transformação: como era impossível para a praia, chegar ao boteco, que ela, completamente, nele se transformasse para o deleite dos ávidos frequentadores do continente. Mas era necessário, ainda, propagar uma vibração sonora contagiante para esse povo folgazão, e aí, enormes caixas de som passaram a reverberar ritmos quentes. Não se podia conversar sossegadamente mais. E o mar coagulou-se de veículos de todos os feitios: lanchas, veleiros, caiaques, jet skis, bananas boats. Não se podia nadar desembaraçadamente mais.”
O parágrafo entre aspas é fração de um texto meu, vizinho de página de um do Nivaldo Simões; de costas um com outro. Jornal da ilha, saudosa versão 1.0, março de 1998.
Puxa, mais de vinte anos atrás, quase vinte e um, a idade da maioridade … É triste pensar que o Nivaldo faleceu precocemente, mas essa tristeza se alivia um pouco ao perceber que a sua partida antes da hora o poupou de viver na ilha de 2018. O título do meu artigo era “o ovo da serpente”. Pois passado tamanho tempo, esse ovo chocou e a serpente se aboletou no paraíso.