Logo na entrada ele nos recepciona sorridente. Com as maçãs do rosto rosadas brilhantes de tanta saúde. É robusto; é obeso. E está inteiramente vestido de aveludado vermelho. Não carrega nas costas o saco de presentes. Esparrama-se isso sim moleirão num sofá macio também vermelho roçando sensualmente em sua versão feminina, a mamãe Noel, uma loira jovem e gostosa de minissaia.
Pais e mães, alucinados jogam seus filhos, suas filhas pequenas, tolos e tolas em sua infantil inocência, para o colo gordo e quente desse personagem todo dentes. Empunham então seus smartphones câmeras e se curvam quase reverentes no esforço de enquadrar na diminuta tela essa fantasiosa cena.
Nos outros ambientes, um clima invernal onde reinam estáticos bonecos de neve, gnomos, ursos polares adormece nossa mente no meio de paisagens nórdicas em palcos de faz de conta.
A poucos passos de distância, fora do shopping center com ar climatizado, o calor passa dos quarenta graus. A chuva de verão lava o asfalto quente e uma névoa de vapor embaça o ar.
A foto agora é outra. Ele é magro; magro não, esquálido. Está quase nu. Seus pés descalços mergulham na água suja que corre veloz na sarjeta. É um vulto escuro de costas arqueadas por carregar o grande peso de um enorme saco negro repleto a gente não sabe de quê. Mas adivinha: são restos, são imundícies, são dejetos. São coisas que jogamos fora; não nos servem mais; delas nos fartamos.
Nenhum pai, nenhuma mãe aninha seu filho ou filha no colo duro da falta de carnes dessa esquelética figura e a fotografa feliz.
Nenhum pai, nenhuma mãe, nenhum filho, nenhuma filha enxerga esse solitário preto miserável tomando chuva na rua; ele é invisível, ele é transparente. Desde muito cedo ensinam os bem aquinhoados a não ver gente da laia dele e de tanto não serem reconhecidos falam sozinhos, gesticulando para uma plateia imaginária e enfim, humana.
Todos os bem aquinhoados preferem acreditar num mundo de papai Noel bonachão voando num trenó puxado por renas dentro duma paisagem esbranquiçada e fria que nossos lojistas edificam com primor como se viva fosse a olhar e verdadeiramente ver essa legião de desafortunados carentes não só de tetos seus mas de sonhos habitando as marquises, os desvãos dos viadutos, os refúgios inóspitos da cidade de concreto.
Quem com sóbria lucidez se inquieta ao descortinar nesse lugar por demais próximas duas realidades tão visceralmente distantes uma da outra não enxerga desta feita deus misericordioso onde quer que seja nem mesmo aquele que dizem ter nascido esse dia e por isso não consegue articular o começo da frase com “meu deus, deus meu”.
Assim ela inicia e termina com “que mundo é esse? Mas que mundo obtuso, que mundo absurdo, que mundo desgraçado de ruim é esse nosso mundo!!!”.