foto em foco: o horror, o horror

Desde o seu nascimento passados mais de quatro anos, a foto em foco fazendo jus ao seu nome sempre saiu estampando fotos. Fotografia de rua versando sobre o cotidiano de Ilhabela, São Sebastião, Caraguatatuba.

A coluna de agora rompe essa tradição e sai sem foto alguma.

Porque não há foto à altura de retratar a desumanidade do assassinato de João Alberto num supermercado Carrefour em Porto Alegre.

Todo mundo viu esse vídeo curto, de menos de cinco minutos, exibindo a barbaridade de uma mortífera agressão despropositada.

Diante dele, diante dessa cena de um João preto imobilizado por um segurança branco enquanto outro igualmente branco o soqueava na cabeça sem piedade numa sucessão interminável de murros fortes, as palavras que ocorrem são as de “o horror, o horror”. Essas mesmas proferidas pelo ensandecido bem-nascido europeu Kurtz, no romance de Joseph Conrad, coração das trevas, que inspirou o filme Apocalypse Now de Francis Ford Coppola.

Tempos alucinados no Brasil bolsonarista que parece ter se transformado naquela sociedade depravada perdida nos confins dos trópicos pestilentos presidida por Kurtz que se tinha na conta de um deus, com poder e direito de cometer reiteradas atrocidades contra o seu povo.

A gente sabia e até viu tortura em vídeo compartilhado nas redes sociais sendo praticada num desses comércios racistas. Mas ela acontecia sempre longe dos olhares indiscretos, sempre nos fundos, nalguma salinha escondida de depósito.

Agora no brasil pátria amada brasil ela ficou escancarada para o mundo inteiro; aconteceu logo em frente a um dos principais acessos desse supermercado Carrefour à vista da clientela que passava circundando a arena da matança como se nada lhe significasse.

Uma corpulenta funcionária branca do Carrefour filmava com celular a selvageria bem de perto como quem filma uma criancinha fazendo gracejo.

Enquanto o piso caramelo se salpicava de sangue; gotas e mais gotas vermelhas se destacando no pavimento brilhoso.

Enquanto João Alberto gritava de dor e pedia socorro.

Mas ninguém o socorreu e sua vida inteira se estilhaçou nesses cinco minutos de pancadaria covarde.

O que fez João Alberto para ser morto? “Olhou feio”para uma funcionária do Carrefour? Deu um soco no  segurança troglodita que o conduzia impositivamente para fora do hipermercado, contrariando sua vontade, quem sabe, talvez, reagindo a um insulto dele?

Fosse ele branco rico como aquele de Alphaville ultrajando com furor os policiais militares mansinhos na porta da sua mansão, também em filme registrado e diferente teria sido o desfecho. Jamais milico brutamonte lhe faria sombra. O gerente do supermercado correria prestativo para repreender severamente a funcionária que teve o desplante de ofender o doutor. O doutor teve um surto, justificado foi seu surto; perdão excelentíssimo senhor doutor.

Um jovem preto que cometeu o crime de surtar no Extra da Barra da Tijuca ano passado teve como fim morte brutal.

O fato é que por se tratar não de um senhor seu doutor branco rico bem trajado mas sim de um preto pobre mal vestido que importunou uma funcionária só por lhe ter dirigido um olhar enviesado, provavelmente por ter se sentido discriminado como o são, rotineiramente, os que não brancos são nesses templos de consumo todos construídos sob a égide marqueteira de lugar de gente feliz, ali mesmo na boca do estacionamento e diante do olhar indiferente das pessoas próximas foi instituído tribunal penal e prontamente aplicada a sentença de morte.

O Carrefour então solta notinhas de desagravo como o fez antes diante de monstruosidades em suas dependências. Em 2009, sua milícia surrou o vigia e técnico em eletrônica negro Januário Alves de Santana, de 39 anos, no estacionamento de uma unidade em Osasco por acreditar que ele estava roubando seu próprio carro, um Eco Sport. Em 20018, foi a vez de Luís Carlos Gomes, negro e deficiente físico ser alvo da selvageria desses algozes de guarda pretoriana que o agrediram com tamanha brutalidade a ponto de lhe ocasionar a sequela de ficar com uma perna mais curta. Ano passado, um segurança da unidade de Osasco não satisfeito em envenenar com chumbinho um cachorro que poderia cometer a suprema heresia de importunar a visita de supervisores da matriz, o espancou selvagemente até a morte.

Quando se trata de morte, ainda que humana, pouco caso é o que lhe atribui essa rede haja vista a dada a de Moisés Santos, negro ele também, falecido numa unidade do Recife; seu corpo foi encoberto por caixas de cerveja e guarda-sóis enquanto a loja continuava sua rotina atestando sua total falta de empatia pelo sofrimento alheio.

E ficou por isso mesmo. Suas ações em alta na bolsa de valores. Os assassinos de João Alberto em breve soltos à espera dum julgamento de pena branda.

Bolsonaro e Mourão pregando que não há racismo no país que governam reprisando o discurso obtuso da insepulta ditadura militar. Esses dois e sua entourage vão deixar para a história o fato incontestável de terem sido os maiores artífices do desmantelamento do mito do brasileiro cordial. Ao capitanearem a nação, legalizaram o discurso dos ressentidos, dos odiosos, dos racistas, dos ignorantes.

E a brasileirada vai continuar a fazer suas compras normalmente lá nesse supermercado de funcionários sociopatas, racistas e matadores de aluguel passado algum tempo depois de limpo o chão ensanguentado.

Num jornal regional é extemporâneo publicar essas linhas?

Se olharmos por um momento para Ilhabela e percebermos que muito da xenofobia que nela grassa é dirigida aos negros, mulatos, cafusos, mestiços em geral pobres, a resposta é não.

Há hoteleiros, há donos de restaurante, há donos de botecos que invadem a areia das praias as emporcalhando e obstruindo com centenas de mesas, cadeiras, guarda-sóis com o consentimento e o estímulo do poder público semeando preconceito contra esses brasileiros porque eles não gastam tanto em seus estabelecimentos. Com deseducação os tratam pretendendo espantá-los da frente dos seus negócios.

Os próprios moradores alimentam esse sentimento daninho; lastimam o turismo de um dia; o turismo dos ônibus de excursão da periferia das metrópoles que estacionam em São Sebastião e descarregam na balsa seus usuários. Acham que eles “fazem feio” na paisagem e podem pôr para correr a ricaiada, essa sim tão bem-vinda e bem tratada.

Paradoxal é que parte desses moradores sinta na pele essa discriminação ignominiosa quando frequentam as praias por serem confundidos com os turistas de um dia por causa da cor da sua pele e da sua indumentária.

É certo que os donos do pedaço e seus seguranças e garçons não chegam ao extremo de espancar ninguém; mas sua atitude de proscrição, de repúdio a esse povo desde sempre oprimido e humilhado machuca tanto quanto soco e chute.

O racismo e a barbárie escancarados pelo homicídio de João Alberto reverberam pelo país inteiro neste instante.

Por isso, mesmo apartada do continente, Ilhabela respira e vive o brasil porque nela se encontra a perversa semente dessa maldade nativa crescendo impunemente no seu coração.

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