Com águas muitas vezes acolhedoras, outras desafiadoras, a geografia do Litoral Norte intriga a lógica através dos séculos. Conhecido como o Triângulo das Bermudas Brasileiro, o arquipélago de Ilhabela é um verdadeiro cemitério de navios e, hoje, um paraíso para mergulhadores. São mais de 100 registros de naufrágios entre os séculos XVI e XX, período em que colonizadores, piratas e mercadores de escravos escarafunchavam a região.
A série de acidentes que cerca a história local está intimamente ligada às rochas magnéticas presentes na formação geológica do solo. As chamadas magnetitas agem como um imã e atraem a agulha das bússolas, equipamento que foi responsável pela direção das viagens durante séculos. Esse impacto magnético levou diversos marinheiros a rumar na escuridão de encontro com enormes lajes e pedras. O campo eletromagnético é capaz de alterar diversos equipamentos de navegação, até mesmo os mais modernos dos tempos atuais, e antigamente isso resultava em desvios de rota de milhares de milhas, enquanto os condutores acreditam estar no rumo certo.
A magnetita tem origem na formação vulcânica da região e surge a partir de minerais com propriedades magnéticas, como óxido de ferro. A pedra é mais escura e metalizada do que as demais, mas de difícil identificação pelos navegadores, pois fica sempre no meio de outros tipos de rochas. Todo o planeta é envolto por correntes elétricas desta natureza, mas a concentração eletromagnética dessas rochas é maior e isso amplia o poder magnético da região.
Outro fator que pode interferir na rota de navegação é a ligação direta entre o oceano do Litoral Norte e o Polo Sul do planeta. Pesquisadores afirmam que este caminho livre de barreiras permite a importação da energia dos polos, além da viagem de vagalhões e tempestades que chegam da Antártica sem encontrar obstáculos.
Os naufrágios
O primeiro registro oficial de um naufrágio no Litoral Norte data de 1884, quando o navio inglês Dart se chocou contra a Ponta da Itaboca. A embarcação transportava cerca de 15 mil sacas de café e ficou presa entre as rochas antes de afundar, o que gerou tempo hábil para que os 60 tripulantes se salvassem. Apenas o capitão do cargueiro foi registrado como morto.
Em 1959 foi a vez da desventura do navio espanhol Concar. O cargueiro se partiu em três pedaços ao bater contra a Ponta da Pirassununga e espalhou lotes de azeite de oliva, azeitonas, molho de tomate, carne seca e cigarros Marlboro. O fumo não se salvou e os alimentos foram parar em diversas comunidades isoladas de Ilhabela, que acabaram fazendo usos imprevisíveis dos objetos. Os azeites de luxo acabaram nas lamparinas das comunidades sem energia elétrica, enquanto a massa de tomate foi usada como tinta para pintar as casas dos nativos. Azeitonas foram rejeitadas pelo sabor insólito. Já a carne seca, que despertou o paladar dos caiçaras, acabou gerando um surto de intoxicação e teve que ser rastreada e confiscada pela Marinha.
O maior acidente registrado na costa brasileira foi o naufrágio do transatlântico espanhol Príncipe de Astúrias, que levava cargas e passageiros para Buenos Aires, em 1916. Conhecido como Titanic brasileiro, o navio luxuoso transportava oficialmente 578 pessoas, embora testemunhas afirmem que mais de 800 imigrantes clandestinos viajavam nos porões, fugindo da 1ª Guerra Mundial.
A embarcação também trazia uma valiosa carga de cobre, chumbo, estanho e estátuas para monumentos que decorariam a capital argentina. Entre 20 enormes estátuas de bronze que afundaram, somente uma foi resgatada até hoje. O feito foi do mergulhador Jeanis Platon, que empreendeu recursos próprios para a operação.
Durante um suntuoso jantar, o navio se chocou contra a Ponta da Pirabura e afundou totalmente em menos de cinco minutos, deixando 450 mortos (e mais de mil extraoficialmente), enquanto a orquestra ainda tocava marchinhas de Carnaval. Tripulantes sobreviventes contam que o capitão da embarcação não se conformou com o desastre e deu um tiro na cabeça. O corpo do oficial nunca foi encontrado.
Curiosamente, poucas horas após o desastre, o navio francês Vega também teve a rota alterada pelo mesmo fenômeno magnético e avistou os destroços. O capitão ordenou a interrupção do percurso e conseguiu realizar o resgate de quase 100 sobreviventes que estavam à deriva. Aqueles que não tiveram essa sorte foram arrastados pelas marés e muitos corpos se amontoaram em diversas praias de Ilhabela, como na Serraria, onde os caiçaras tiveram que improvisar um cemitério para enterrar as vítimas.
Uma das passageiras que participava da festa interrompida pelo acidente, Marina Vidal, conseguiu sobreviver e ainda resgatar diversos companheiros. Ela era caixeira e nadadora profissional, mas pelo fato de ser mulher, acabou nunca sendo reconhecida pela historicamente pela bravura. Em uma época de extremo machismo, os homens resgatados sentiram mais vergonha do que gratidão e nunca assumiram terem sido salvos por ela.
As histórias de heroísmo e terror do desastre povoam o imaginário do Litoral Norte até os dias de hoje. Muitos sobreviventes foram amparados pelos caiçaras perdidos na mata, mas em contrapartida outros foram violados e roubados. Moradores da Bahia de Castelhanos garantem ainda ouvir os espíritos dos náufragos durante a madrugada. Inclusive, há registro de um morador que enlouqueceu após abusar do corpo de uma menina que encalhou no local e disse ter sido perseguido por ela até o dia de sua morte.
No extinto Museu Náutico de Ilhabela, localizado no antigo Parque da Usina, existem várias peças recuperadas do Príncipe de Astúrias, além de uma réplica do navio. As relíquias estão encaixotadas atualmente.