FOTO EM FOCO: Claudia Andujar – a redenção

Para inspirar que haja a imprescindível resistência

Por Márcio Pannunzio

Logo nas cenas iniciais, o filme brasileiro Avaeté – semente da vingança é de uma crueldade inaudita. Assistimos uma matança de índios na Amazônia que culmina com o chefe dos algozes, jagunços a soldo de um latifundiário bandido, içando ao ar uma moça índia desacordada depois ter sido estuprada pelos facínoras. Seu corpo de ponta cabeça flutua, as pernas para cima separadas formando um V, a genitália inteiramente exposta em close; isso num filme de 1985, dirigido por Zelito Viana. Na cena seguinte, o rosto do carrasco surge entre as pernas com olhar mortiço elevando acima da cabeça um enorme facão segurado com as mãos entrelaçadas. Ele então, com um único, veloz e certeiro golpe corta ao meio essa mulher. O sangue dela, num derradeiro jorro, lambuza a cara dele.

Vou contar o desfecho maniqueísta porque quem estiver lendo não terá paciência de assistir o filme inteiro: um pequeno índio sobrevive e, crescido, se vinga dos algozes.

A gente pensa que é obra de ficção e fica então estupidamente aturdido, desorientado, embasbacado ao saber que ela se baseou numa chacina real, perpetrada contra os índios Cintas-largas na região de Fontanillas, hoje município de Juína, no noroeste do Mato Grosso, na divisa com a Rondônia e relatado com riqueza de detalhes na confissão de um dos jagunços participantes a um sacerdote jesuíta que a gravou em fita cassete e entregou ao Serviço de Proteção aos Índios.

Genocide, longo artigo publicado no The Sunday Times em fevereiro de 1969, fruto de reportagem minuciosa do jornalista Norman Lewis com fotografias do fotógrafo de guerra Don McCullin relata entre outros, esse macabro episódio inspirador do filme. Escandalizou o mundo e ensejou a criação da ONG inglesa Survival International, empenhada em defender povos indígenas. Foi recentemente publicado na Revista Piauí de janeiro e ainda hoje, continua indigesto e pertinente.

Aí descobrimos que o indiozinho não teria como ter sobrevivido porque foi imediatamente morto com um tiro na cabeça. Vingança alguma houve. Jagunços e mandantes seguiram impunes fazendo mais e mais atrocidades.

Nós do sul maravilha não podíamos fazer ideia de que esse genocídio acontecia num rincão quente e úmido nos confins do país na época da ditadura “Brasil ame-o ou deixe-o” bem longe do conforto de nossos lares classe média.

Mas houve uma sobrevivente de um outro genocídio que soube e naquelas terras longínquas se fixou durante mais de três décadas por livre escolha, amorosamente.

Claudia Andujar, nascida na Hungria e naturalizada brasileira, dedicou sua vida a um povo indígena, os Yanomanis.

Nos anos setenta, trabalhando para a revista Realidade, Cláudia foi para região e fez fotos e a capa de uma edição especial intitulada Amazônia. Começou nesse ponto seu visceral envolvimento com esse povo marginalizado que além de culminar na elevação da sua fotografia a um patamar de arte transcendente, tornou-a uma ativista empedernida e de sucesso inimaginável materializado no reconhecimento da terra Yanomani em 1992.

O notável trabalho da fotógrafa pode ser visto até 7 de abril na exposição “Claudia Andujar: a luta Yanomani”, no Instituto Moreira Sales, na Avenida Paulista, quase esquina com a Rua da Consolação. Estamos ao rés do mar, longe do topo da serra mas vale sim e demais a pena ir a São Paulo ver essa exposição que sobreviverá em nossa memória pela força da sua extraordinária beleza e ferina contundência. A coluna Foto em Foco da semana fornece uma pálida imagem de como ela é.

Há nela, na área reservada às mesas expositoras, em um anexo do espaço expositivo, uma foto em preto e branco da linda Cláudia aos quarenta anos feita por seu marido George Love, ele igualmente um talentoso fotógrafo. Ela nos encara com vigorosa firmeza pelo visor ocular de sua hoje clássica câmara SLR Asahi Pentax Spotimatic SP e é como se entre ela e nós tivesse mesmo de existir a intermediação dessa máquina de imprimir o mundo em película fotossensível.

Nas suas mãos seguras a realidade subverteu-se. Numa época sem photoshop, lightroom, sem câmaras digitais com seus monitores de imagem em tempo real, fez fotos deliciosamente intimistas que só uma proximidade afetiva e consentida permitiria; fez fotos lisérgicas como um transe xamânico. Quebrando as caretas convenções do fotojornalismo imortalizou a vida de um povo para a posteridade. Fez isso rompendo os limites da técnica fotográfica comezinha, improvisando filtros caseiros com vaselina e tecidos diversos, empregando filme infravermelho, praticando exposições múltiplas, manipulando a luz com raro preciosismo, fundindo cromos diferentes. Fez isso com o exercício de um talento e sensibilidade ímpares.

É impossível não se emocionar, não arrepiar a visão no encanto mais do que visual, mas até táctil ao olhar, das fotos que retratam o cotidiano daqueles índios nos colocando tão próximos deles a ponto de, mesmo nas fotos em preto e branco, sentirmos a vibração da sua pele morena de textura aveludada e o perfume do seu hálito. Impossível não se chocar e com ímpeto se revoltar com as fotos que desmascaram o impacto da construção da Transamazônica no desmantelamento da cultura deles infelicitando suas vidas antes tão suaves; fotos essas expostas em um segundo andar.

Cláudia sobreviveu a um genocídio. A maior parte da sua família foi assassinada no campo de concentração de Dachau em 1944. Num depoimento comovente para o “Ideias que transformam”, no “Transformadores 2013: Claudia Andujar”, ela nos confessa emocionada que carregou a culpa por ter sobrevivido, a culpa por não ter acompanhado seus familiares na morte. Familiares que foram marcados para morrer.

Na série fotográfica “Marcados”, vemos uma sucessão de fotos de índios e índias de todas as idades posando com números. Como eles não tinham nomes, era preciso identificá-los quando atendidos pelos médicos voluntários. Então, Claudia os fotografou daquele jeito, ostentando números e feliz ela nos conta que desta feita foram eles marcados para viver.

Assim como foi todo o seu povo e cultura graças à arte e ao ativismo dessa fotógrafa que de tão longe veio para presentear, a esses índios e a toda nação brasileira, com um bem tão grande. Bem esse, o do direito à vida e ao reconhecimento da sua integridade de uma etnia injustamente hostilizada, que ofuscou e redimiu aquela culpa original que atormentou sua vida de jovem refugiada; pois se não morreu junto aos seus como chegou a desejar no ápice da sua agonia, pôde efetivamente salvar do genocídio a sua enorme família Yanomani.

Com o desmantelamento da FUNAI e a retomada da mesma política obtusa e genocida da ditadura de pretender integrar os índios a nossa vida violentando a vida deles, invadindo e dilapidando suas terras que são terras de todos nós, terras da união, a mando e em proveito dos setores mais retrógrados do agro negócio (culpadas pelo desmatamento, pelo trabalho escravo, pelo uso indiscriminado de agro tóxicos, pela exploração ilegal de madeira, pela invasão de terras indígenas, pela grilagem de terras da união, pelo assassinato de centenas de lavradores pobres e de sem terra) e mineradoras (culpadas pelo desmatamento, pela invasão de reservas indígenas, contaminação com poluentes altamente nocivos da terra e cursos d’água, pela matança de centenas de pessoas, pelos desastres ambientais, entre eles, os colossais em Mariana e agora há pouco em Brumadinho), tornou-se substantiva a obra e o trabalho de Claudia Andujar.

Para inspirar que haja a imprescindível resistência e o genocídio de outrora não recrudesça; para que o amor que norteou sua ação redentora nos contamine nos tornando como ela, fortes, generosos, respeitosos, verdadeiramente solidários. Para que no futuro não sejamos estigmatizados, marcados para sempre pela humanidade e pela História como cúmplices calados, passivos, indiferentes ao extermínio da vida e cultura de nossos irmãos brasileiros indígenas. Para que nossos descendentes não carreguem o fardo pesado da culpa da nossa omissão.

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