Na longínqua década de setenta, os cineclubes criados pelos centros acadêmicos de faculdades eram um farol na escuridão. Naquela época, recém saído da pré adolescência, graças à liberalidade de universitários de boa vontade, pude assistir filmes que incendiaram minha mente e estimularam o florescimento do meu senso crítico. Filmes inesquecíveis como Satyricon, – de Federico Fellini, Laranja Mecânica, – de Stanley Kubrick, Blow up – de Michelangelo Antonioni, o discreto charme da burguesia – de Luis Buñuel, Macbeth – de Roman Pollanski, cidadão Kane – de Orson Welles…
Os cineclubes minguaram; os próprios cinemas cederam suas salas majestosas para seitas evangélicas e sobrevivem agora nos Shopping Centers passando blockbusters hollywoodianos dublados.
Foi então com surpresa que descobri que desde julho funcionava um cineclube, o Cineclube Citronela, no Espaço Cultural Pés no Chão. Um cineclube focado na exibição de documentários brasileiros.
O que foi projetado nesta terça, dia 27 de outubro, bem depois da ressaca eleitoral, foi “o jabuti e a anta”, de Eliza Capai. Com fotografia chocante e belíssima, ele dá voz às pessoas das populações ribeirinhas e indígenas impactadas com a construção da usina hidrelétrica de Belo Monte.
Os expectadores se deram conta de que aquela obra gigantesca e tão distante da Ilha, mantinha, não obstante, um paralelo com a sua realidade.
Não há nenhuma mega usina aqui. Mas há uma plataforma petrolífera que inunda Ilhabela de royalties e a torna uma das cidades mais ricas do Brasil.
Todavia, essa enorme dinheirama não se traduz em melhorias palpáveis. A cidade é mal planejada; carece de uma política urbanística alinhada ao pensamento humanista de Paulo Mendes da Rocha e de um trabalho paisagístico da feição daqueles inesquecíveis de Burle Marx.
A cidade investe pouco na cultura e é enorme a distância que nos separa de outras cidades que fizeram e fazem revoluções culturais como Paraty, Tiradentes, Paulínia, São José do Rio Preto. Não existe um museu da imagem e do som que faça o inventário e zele pela cultura insular. O Centro Cultural da Vila foi uma boa iniciativa, mas suas instalações poderiam melhorar bastante; o Museu Waldemar Belisário se apresenta de maneira desastrosa logo na sua fachada ao exibir reproduções de péssima qualidade de pinturas do artista que o nomeia; não há reserva técnica para preservar obras de uma pinacoteca municipal que também não existe. Há shows musicais quase o tempo inteiro, mas parte expressiva deles é popularesca, atendendo mais ao lema “pão e circo” do que a uma política que efetivamente valorize e promova a cultura. Teatro? Seu esqueleto agoniza à vista de todos; consumiu milhões e dizem que será demolido. Cinema público? Foi inaugurado com pompa não faz tanto tempo para ser fechado logo depois.
Escolas paupérrimas do Nordeste têm melhor desempenho que as escolas de Ilhabela evidenciando a falha de um pensamento que constrói escolas físicas, mas não se ocupa de implementar práticas de ensino mais eficazes e criativas, como por exemplo, as preconizadas pela Escola Lumiar da Fundação Ralston Semler.
Cidades bem mais pobres têm parques e praças mais bem cuidadas que as de Ilhabela que comprou por mais de vinte milhões a Fazenda Engenho d’Água, para mantê-la fechada.
O meio ambiente é violentado sem trégua, com praias e cachoeiras poluídas, ocupação urbana desordenada invadindo áreas de proteção ambiental numa disputa fratricida por um lugar para construir e construir muito mal como foi construído o prédio da prefeitura “Sauna de Blindex”, com ar condicionado ao máximo alimentado por geradores com os seus ocupantes agonizando de calor cobrindo as paredes de vidro com manta asfáltica e assim escancarando a disfuncionalidade de um prédio ruim. Particulares abonados dão também mau exemplo entupindo a via principal da Ilha, a Princesa Isabel, com caixotões de alvenaria de uma pobreza arquitetônica de chorar e os remediados, expandem a franja urbana edificando suas casas com enorme precariedade.
Ilhabela cresce em ritmo vertiginoso atraindo uma leva grande de imigrantes sonhando enriquecer e todo mundo almeja construir chalé para turista e enquanto não consegue, aluga a própria casa pelo Airbnb, Alugue Temporada, Booking e congêneres.
E fato desanimador, as suas instituições funcionam precariamente. A prefeitura tornou-se uma pujante empregadora. Entope suas repartições de gente e na ânsia de gastar a sua verba milionária investe em obras e obras e obras, sendo muitas delas, conforme relatório do Tribunal de Contas, de péssima qualidade, tanto que quando prontas exibem nítidos sinais de deterioração. Outras são surreais, como as da troca de calçamento em bom estado e a compra e reforma de imóveis particulares para abrigar novas repartições públicas que vão contratar mais funcionários públicos levando às alturas a folha de pagamento do funcionalismo antevendo que quando os royalties acabarem, faltará dinheiro para todas as secretarias… A câmara dos vereadores, a quem cabe fiscalizar o executivo, a ele se alia e o fato de vereadores virarem secretários municipais é visto como normal quando deveria, no mínimo, causar estranheza. O poder judiciário tem protagonismo tímido. A sociedade civil está desorganizada.
Logo após a projeção do documentário “o jabuti e a anta”, membros da plateia abordaram de maneira pungente, emocionando-se às lágrimas, alguns desses tópicos acima elencados, instaurando um debate que enfatizou nosso despreparo em lidar com o meio ambiente e os problemas decorrentes do crescimento desordenado.
Esse debate sensível e consciencioso como há muito não se presenciava na Ilha, comprovou que o Cineclube Citronela honrou com brio o papel dos saudosos cineclubes do passado, qual seja: o de ser um farol na escuridão iluminando o caminho do discernimento.
E por isso, muito mais do que por ser um espaço para exibição de filmes, o Cineclube Citronela é um muito bem-vindo lugar para o debate substantivo acerca da Ilha do presente e a propósito da Ilha na qual gostaríamos de viver no futuro.